sebenta de anotações esparsas, pensamentos ociosos, reflexões cadentes, poemas difusos, introspecções de uma filosofia mais ou menos opaca dos meus dias (ou + reminiscências melómanas, translúcidas, intra e extra-sensoriais, erógenas, esquizofrénicas ou obsessivas dos meus dias)
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cahier de notes éparses, pensées oisives, réflexions filantes, poèmes diffus, introspections d'une philosophie plus ou moins opaque de mes journées (ou + de réminiscences mélomanes, translucides, intra-sensorielles et extra-sensorielles, érogènes, schizophrènes ou obsessionnelles de mes journées)

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

O mercado dos carros "low cost"

Construtor indiano cria automóvel a pensar nas bolsas modestas
Tata Nano: o carro mais pequeno do mundo

Tata Nano: o nome parece uma onomatopeia de recém-nascido, o que vem mesmo a calhar para o carro mais pequeno do mundo. O preço também se quis pequenino: 1.700 euros, o mais barato do mercado. Parece impossível fazer melhor.

Apesar do nome (*) e do tamanho, nem tudo é pequeno neste utilitário de cinco portas e com apenas 3,10 metros de comprimento. O negócio é chorudo e promete ser mais uma revolução num dos segmentos com mais expansão no seio da indústria automóvel : o dos carros "low cost" – a preços acessíveis para as bolsas mais modestas (ver caixa).

O Tata Nano não tem climatização, direcção assistida nem janelas eléctricas e a motorização é mínima: 624 centímetros cúbicos para o modelo a gasolina (equivalente à cilindrada de uma moto) e 700 para o modelo a gasóleo.

Apelidado de "carro do povo", o Nano tem, como o Carocha Volkswagen original – que significava em alemão também "carro do povo" –, a pretensão, segundo os seus construtores, de ser adquirido pelas famílias mais modestas dos países pobres ou em vias de desenvolvimento. Apresentado em Janeiro em Nova Delhi pelo construtor automóvel indiano Tata Motors, sediado em Bombaim (Mumbai), o Nano deverá começar a ser comercializado em finais deste ano.

Na primeira fase, a Tata Nano propõe-se fabricar 250 mil veículos por ano, para passar ao milhão anual posteriormente. Nas suas primeiras intervenções públicas sobre o Nano, o patrão da construtora, Ratan Tata, chegou a dizer que o veículo não seria exportado para a Europa Ocidental, porque este não está adaptado aos padrões ambientais aí vigentes, sendo o primeiro objectivo distribuí-lo em países de economia emergente como os da América Latina, África, Europa do Leste, mas também a vizinha Malásia e, naturalmente, entre a clientela doméstica indiana. Entretanto, a empresa veio anunciar, na semana passada, que afinal o Nano será exportado, em colaboração com a Fiat, para a Europa Ocidental, dentro de quatro anos, o tempo necessário para criar uma versão em conformidade com as regras de segurança europeias e de emissão de dióxido de carbono Euro 5. O construtor não promete, porém, que o preço aplicado na Índia (1.700 euros) não seja revisto em alta quando chegar à Europa.

Enquanto isso, Ratan Tata encontra-se actualmente em conversações com a Ford para a retoma da Jaguar e da Land Rover.

No Luxemburgo, a Tata emprega 76 pessoas na Tata Consulting Services (TCS), uma filial especializada em tecnologia da informação, baseada em Capellen.

Automóveis para todas as bolsas


O lançamento do Tata Nano em Janeiro pela construtora indiana Tata Motors inscreve-se num contexto de competição internacional crescente no segmento dos veículos a baixo preço ("low cost").

Um dos exemplos recentes é a Logan Dacia, que a Renault lançou em 2004, a pensar no mercado da Europa de Leste. O seu preço não devia ir além dos 5 mil euros. Pouco tempo depois e mercê das muitas solicitações que chegavam nomeadamente também da Europa Ocidental, o modelo foi comercializado nos nossos países a partir de 6.500 euros.

Depois desse sucesso, a marca francesa, agora em parceria com a Nissan e a indiana Bajaj, está já a pensar num modelo ainda mais barato a 2.500 euros.

Uma terceira construtora indiana, a Xenitis, está a juntar esforços com a chinesa Guangzhou Motors para a criação de um automóvel a um preço imbatível.

A Opel acaba de anunciar igualmente que está a trabalhar num modelo, a comercializar apenas na próxima década, e que não deverá custar mais de oito mil euros.

Os desenhadores da Volkswagen, Toyota, Honda e Fiat estão também já em cima dos seus estiradores para não falhar esse segmento de mercado.

José Luís Correia (in Contacto, 20.02.08)

(* Nano : em Física, o nanómetro, ou nanometro, corresponde à milionésima parte de um milímetro)

Foto: Tata Group

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

meteorologia íntima

mau tempo no canal
o esfíncter torcido
dói-me o estômago
à segunda-feira almoço sempre mal
stressado com o tempo a escorrer na ampulheta fatal
o contra-relógio maldito do disco solar
a empurrar nuvens negras sobre mim
rajadas fortes nas beiras interiores
e as costas assediadas por marés vivas
passei o dia a enviar garrafas ao mar
amanhá é outro dia,
terça-feira e a neura já me terá passado!

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

lenda urbana que circula na internet

Numa prova de entrada para a Universidade, pediram aos alunos para interpretarem o seguinte trecho de poema de Camões:


"Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói e não se sente,
é um contentamento descontente,
dor que desatina sem doer".

Uma aluna deu a sua interpretação:

"Ah! Camões, se vivesses hoje em dia,
tomarias uns antipiréticos,
uns quantos analgésicos
e Prozac para a depressão.

Comprarias um computador,
consultarias a Internet
e descobririas que essas dores que sentias,
esses calores que te abrasavam,
essas mudanças de humor repentinas,
esses desatinos sem nexo,
não eram feridas de amor,
mas somente falta de sexo!"


Parece que teve nota máxima. Foi a primeira vez, depois de mais de 500 anos, que alguém entendeu qual era a ideia do Camões...

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Dedicado àquela que eu amo!


O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar pra ela,
Mas não sabe falar.
Quem quer dizer o que sente,
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente,
Cala: parece que esquece.
Ah, mas se ele adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse,
Pra saber que o estão a amar!
Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!
Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe,
Porque lhe estou a falar...
Fernando Pessoa

O amor é uma companhia
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.
Alberto Caeiro

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Ainda o caso " Bommeleeër"

Romper a lei da omerta

Depois de muitos anos amodorrado, o caso Bommeleeër – o bombista que perpetrou 18 atentados com explosivos entre 1984 e 1986 no Grão-Ducado – tem vindo a avançar com novas revelações desde 2005, em solavancos parcos, mas sucessivos.

Os anos vão passando, velhos rumores vão-se desfazendo e dando lugar a novos boatos, os vultos que ocupavam cargos na época vão sendo substituídos nos seus postos, as testemunhas vão perdendo o temor em falar e as línguas vão-se soltando.

Refutando toda e qualquer teoria do "complot" ou lei da omerta (lei do silêncio) que pesasse sobre este caso e que o interditasse de agir livremente, o ministro da Justiça já insistiu, visivelmente agastado, que na altura dos atentados era um jovem estudante em Paris e que não tem assim qualquer interesse em impedir que se aplique o maior rigor e a mais completa transparência na conclusão destas investigações. Muito pelo contrário, Luc Frieden parece mesmo estar a cansar-se das meias-medidas tomadas ao longo de 22 anos de investigações mornas.

É que o que está em causa é mais do que uns "meros" (desculpe-se o eufemismo!) atentados terroristas: é a confiança dos cidadãos em duas das mais importantes instituições nacionais, que são a polícia e a justiça luxemburguesas.

Na quarta-feira, numa decisão sem precedentes na história do país, o mais recente episódio da saga Bommeleeër levou Frieden a demitir os dois mais altos responsáveis da hierarquia policial. Em causa, a decisão tomada por estes em 27 de Maio de 1985 de interromper a investigação que estava a ser efectuada ao principal suspeito da altura, horas antes de uma nova bomba eclodir, o que pareceu mais do que uma coincidência suspeita ao ministro e ao procurador de Estado.

E agora?, o que nos aguarda nas cenas dos próximos capítulos?, está ou não a polícia envolvida nos atentados?, quem ou em nome de que interesses foram cometidos estes actos de terrorismo?

Assim como os Estados Unidos da América arrastam atrás de si há décadas a sempiterna polémica sobre quem assassinou/mandou assassinar o presidente John Fitzgerald Kennedy, em 1963, e Portugal deixa pairar há quase 28 anos o caso nunca completamente elucidado da trágica morte de avião (acidental/criminosa?) em Camarate do primeiro-ministro Francisco Sá-Carneiro (1980), o Luxemburgo tem a sua "novela" Bommeleeër .

Resta saber se também este é um enigma que nunca virá a ser esclarecido, em que a lei do silêncio resistirá às pressões da opinião pública e da justiça, que exigem que a verdade seja descortinada.

A subsistirem, as teias obscuras deste mistério nacional apenas contribuirão para alimentar, entre a população e os media , o descrédito das instituições nacionais e as mais diferentes teorias de uma conspiração que protege vultos poderosos ou interesses que ainda hoje permanecem na sombra.

José Luís Correia (in Contacto, 06.02.2008)

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

esquisso - Viagem à volta de Lucilin

(primeiro esquisso, Natal 2006-Natal 2007)

Viagem à volta de Lucilin



Manhã de inverno, frio abaixo do zero
Pequeno-almoço em pijama
Nao consigo decidir-me frente aos cereais
Biolay, Frégé, Garrell ou Delerm.
Chupo pães de leite ensopados
Em capuccino caseiro
Numa grande xicara azul e branca de faiança
Comprada numa Primavera florida nas gargantas do Verdon
Mordisco pêssegos carecas
Os meus dedos vagabundeiam semi-distraidos
pelos jornais do fim de semana
absortos da noção de que não conseguirei ler nem metade
ou ia-se também já o próprio prazer,
que é tudo o que me resta numa manhã fria.



Les Livres do Le Monde, a página Culture do Soir,
o Libération tem uma nova paginação,
o Magazine Littéraire e a Lire panegiricam sobre Littell
e o jornal de Letras sobre os contos exemplares da Sophia.
Não devia ter comprado tudo tão bolimicamente,
sou como um miúdo, tonto no meio de tanta guloseima,
que ao encher os bolsos ávidos já sabe que encherá
a boca só para empanturrar-se de forma doentia,
nao sem antes exibir aos coleguinhas
os rebuçados mais coloridos, a barra de chocolate-novidade.
Do estômago sobe-me uma insustentável azia pelas goelas acima,
um vómito augado perante a abundância das doçarias, de tanto açúcar
das prateleiras cheias de arte e literatura em frasco
que se propagam azimut e exponencialmente
e me atrofiam e paralisam frente à página branca e ao ecrã negro,
uma azia que não sofre de memória olfactiva e papilar
e apreende a comparação.

Sobrevoo as notícias, gaza, al-qaeda, chéchénia, litvinenko, politkovskaja, a campanha eleitoral francesa, inflação, a deslocalização, a mundialização, os rtts, os ogms, as ongs, os clones, os políticos, a corrupção, os evaporitos do mar morto, as cordas que ameaçam a física, as catástrofes naturais, o aquecimento global, os acidentes áreos, a pala parcial da justiça, da crítica.

Semanalmente, invariavelmente, o último grande fenómeno,
os novos talentos incontornáveis, os futuros grandes vultos do século que cresce,
mas são sombras chinesas, os mesmos autores,
mudam as caras, às vezes os nomes,
mas lá vêm as palavras-chave, chaves-mestras da compreensão enlatada,
as frases-choque atiradas ao público como migalhas de filosofia de algibeira,
propaganda concentrada, as aulas de marketing propaladas
em todo o seu esplendor, o briefing aprendido na ponta da língua.

Passo a página. A sopa crick de kafka, o último best-seller do Ormesson,
As melomanias da Dombasle, os vértigos do marido,
um jogo intermitente entre os retratos
de Durer, Rubens e Deschamps na página da pintura.
Um cinema cruel e áspero, Cronenberg, o dogma já morreu,
anseio debalde por assistir à Coppélia
na Bastilha e ao impúdico Cândido do Bernstein no Châtelet.

Almoço no Petit Bouchon, rue des Bains,
salmão grelhado et pommes au four
um fotógrafo diz-me que vai passar o Natal à Finlândia
e o ano bom a S.Petersburgo, eu estou a ler a batalha de estalinegrade
e sorrio recordando a anita pettersen e as suas questões norueguesas.

Na grand-rue, miro de soslaio os novos tenho-que-ter
A Hermes, a Cartier, a Schroeders, a Dutti.
A Lacoste deu lugar a uma loja de roupa interior feminina.
hesito à soleira da papelaria Beaumont, refugio-me na
Alinea. O apart mudou-se em arco-íris. Q?

Na cinemateca decorre a retrospectiva de cinema espanhol.
O Centauro fita o veado azul fora de prazo, cheira a gaufres belgas,
a salsichas alemãs grelhadas de patronímico furtado.
A Bolsa continua serena, tranquila e quase despercebida, igual ao país.
Uma senhora em casaco raposa sai da Villeroy
e tenta vestir as luvas de cabedal
num malabarismo bambo entre o saquito bram e mala vuitton.

Comprei um oito no fisher
e os odores álacres a farinha padeira transportam-me
até ao adro de uma igreja que eu atravessava todas as manhãs.
Uma vez por semana, o catavento enferrujado (ou seria do pó vermelho?)
surpreendia-me a correr com sete francos
a tilintarem-me nervosas no bolso (não no roto!)
das calças castanhas de bombazine em boca de sino
para ir comprar uma tablete fina de chocolate e uma carcaça.
Depois, metodicamente, introduzia a primeira na segunda
para comer mais tarde na escola ao recreio, quando tinha oito anos.
Não gostava das sandes de presunto e manteiga
Que a minha mãe religiosamente me enviava na pasta quadrada.
Rico do meu lanche civilizado, contornava sorridente o quarteirão,
Como se já pudesse passear pelo mundo
sem vergonha das minhas origens e do presunto alentejano,
Parava na loja dos brinquedos e tudo me era permitido.
Fazia mentalmente a minha lista pra enviar ao pai natal seis meses depois,
e não esquecida nada. Cromos do diamantino e do bento para o meu álbum paninni,
puzzles da fauna africana, carrinhos matchbox, pistas de corrida,
comboios eléctricos, fortalezas playmobils, baldes de lego
para construir toda a minha frota de naves espaciais
e o indispensável fato Actarus para poder viajar até outras constelações
e o do Zorro para usar à civil...

E, como sabia que as cartas dos adultos
tinham sempre um PS, eu lembrava-me in extremis
de alguma coisa pra acrescentar nesse indispensável apêndice:
“Pai Natal, não me tragas os brinquedos
dentro de uma caixa com esferovite
que eu sou elérgico!”

Desço do camões à praça de armas,
pela mesma rua em que desaguei
um dia com um anjo loiro do daugava
e vem-me o perfume adocicado
de bolos de gengibre e chá preto que comemos no oberweiss
mistura-se à canela do vinho quente do mercado de natal
e dos churros da feira do glacis,
procuro lugar cativo no colors, quadrados a imitar ébano,
losangos policromáticos, empregados gay friendly,
o café custa mais barato que no coffee-lounge da rue de la poste
mas lá o alemão faz desenhos cubistas no cappuccino,
dá-me a provar chocolates de hortelã-pimenta e anis,
cakes, pepitas de amêndoa, a escolha entre açúcar branco ou amarelo.

No Casino há bolas espelhadas de discoteca na marquise.
No dierfgen os monólogos da vagina passam em reposição,
na cozinha do diabo fazem-se sopas divinas.
À noite, o urban e o whispers estão lotados,
discutem-se as trades e os trends
uma despedida de solteiro acabou em pancada cá fora
o tube entupido com inglesas lambendo sal nas costas das mãos e e emborcando tequila,
o artscène tem a cerveja mais barata e os adolescentes sabem-no bem
karamba, animação. os tempos em que eu dançava no adro do stiler já foram. yesterdays.

O museu de história e de arte medita, deitado, no sossego nocturno.
Passo pelo kastel aos saltos, dou com a tola na muralha do restaurante goethe
no encontro inopinado com os pedregulhos
que servem de soalho ao tiermchen.
contorno o palácio, o parlamento, o mercado das ervas-doces,
os rostos sobranceiros do café da imprensa
e ociosos nipónicos esporádicos assistem ao render da guarda,
aos turnos dos mancebos, quando a sentinela assoma da guarita
e enfrenta a corrente de ar gelada
que se enfia naquele vão de rua.

Passo pelo bocaccio, apetece-me um carpaccio i pomodoros
deslizo até ao museu da cidade onde ouvi o violoncelo do mergenthaler
e onde nunca compro o renert nem abdico de subir e descer a sala-elevador,
como um garoto num carrocel, ao descobrir um novo brinquedo...
Um restaurante vegetariano, um chinês, um brasileiro,
o espírito-santo sem espírito são numa praça, o ascensor para o vale,
No grund há artistas nas ruas, bebo uma cerveja preta no inglês,
atravesso fortificações, caio nas catacumbas,
tiro fotografias-postais a três amigas alemãs com a ponte vermelha
e as torres gémeas em pano de fundo.
Desço clausen até à cantina da cervejaria, cheira a cachaço de porco assado com
favas, o bar escocês, a taberna britânica, o bar do bob, o melusina,
venço a lomba, regresso à abadia,
na loja de neumunster compro um bloco-notas
com a abelha em torno de uma groselha do dali,
surpreendo um casamento na capela francesa,
extasio-me perante a via láctea e a deriva das galáxias
no primeiro andar do antigo presidio das mulheres

Passeio na petrusse, compro um gelado no mini-golf,
a fonte não espicha água, os joggers correm,
os namorados beijericam-se nos bancos
e eu pensando no meu amor, pensando no meu amor...

transepto


o olhar submetido e lascivo

os gestos devotos e gulosos

a língua proferindo verbos ansiados nos lábios sedentos

pele de rosáceas em flor


os corpos tocam-se, os sangues misturam-se

os cabelos na boca consagrando o peito

os dedos desejando a prece que se empolga

os dentes rasgam a hóstia negligente

as unhas cravam as nádegas azuis

o crucifixo engole o falo proeminente

as mãos rezam a um deus que cresce

o vinho é docilmente ofertado num cacho garboso,

a penitente toma o cálice em êxtase

e bebe piedosamente no genuflexório movimento

de se prostar e de ser penetrada pela fé que a inunda profundamente

o rosto e o queixo rojando nas lajes de mármore frio

por dentro a espinha arde, dobrada apenas para amar.


JLC2006

o homem seforo


Já fui

vermelho

impetuoso

petulante e

fogoso,

faísca,

corte-circuito.


Já fui invisível,

transparente

negro,

verde,

amarelo

laranja intermitente

luz sobresselente.


Hoje apenas

procuro

um pouco mais de

azul,

eu que nasci

para

arder.


JLC2005

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Escrever poesia

"O segredo não é escrever poesia, é vivê-la. Apenas se escreve com a vaidade de imortalidade. Projecto vão. O Homem, por mais imperfeito que assuma ser, tem o desejo indecente de não querer morrer nunca. Consciente dessa impossibilidade física, procura cumprir na sua vida algo para que o recordem mais tarde: filhos, eventos, construções, escritos. Penso que de todos estes projectos de vida o mais nobre deve ser o de dar a vida. Como ainda não fui abençoado, nem sei se serei um dia, escrevo. Considero-a também uma nobre missão. Os poetas sonham o mundo de amanhã, os Homens constroem-no. È apenas mais belo sonhá-lo porque quem o constrói tem sempre a tendência malsã de o perverter."

(Excertos do vol. 1 dos Cadernos , 03/02/2006)

domingo, 3 de fevereiro de 2008

Crónica de antecipação

Dia/Log: 14.30-20.05.2026 Adoro conduzir no campo, acelerar, ver o verde a desfilar cada vez mais rápido, de um lado e de outro, como nos velhos rallyes. Depois paro à bei ra do caminho, dou uns passos na relva, toco o orvalho com os dedos e respiro o ar puro. Ahhh, qu e bom é estar aqui!... Nas cidades já não existe ar puro. Apenas oxigénio reciclado, rarefeito, p obre.

Hoje é a primeira vez que estou verdadeiramente a disfrutar da “franquia verde”, imposto que adquiri o direito de pagar graças ao nível sócio-profissional que atingi ao fim destes anos todos a trabalhar em prol da sociedade que nos canibaliza. Graças a este privilégio, apanágio de uma reduzida minoria, posso conduzir fora das vias tubulares com a minha mais re

cente aquisição: o meu Seat Sintra G6 e o seu velho motor diesel.


As vias tubulares, bah... esses monstros canudóides de vidro e plástico que em poucos anos invadiram e desfiguraram as nossas paisagens verdes e serenas e não me deixam esquecer que vivo na pior década do século XXI, com as suas precaridades agrícolas, a escassez de água doce, a penúria dos combustíveis fósseis, as poluto-pneumonias, as sociedades

ultra-protectiras e controladoras, que vivem em redomas de vidro, temendo tudo.

As antigas auto-estradas foram primeiro isoladas com deflectores de ruído, depois esses muros foram aumentados com paredes poluto-absorventes. Finalmente e como isto não chegasse para travar o sobreaquecimento global, o cratera na camada de ozono e as chuvas químicas, as autoestradas foram hermeticamente fechadas. Nasceram assim, no fim da década passada, as vias tubulares, que é suposto absorverem os gases e fumos dos automóveis, sendo aliás o único sítio onde ainda se pode conduzir veículos poluentes (VPO). Único ponto positivo desta situação: a corrida desenfreada para o desenvolvimento da exploração das chamadas energias brancas renováveis: eólica, solar, térmica, hídrica, magnética e biodegradável. Com tantas energias disponíveis por aí, as sociedades usaram e abusaram dos carburantes fósseis. Estes esgotaram-se quase todos muito antes do prazo previsto, e fomos surpreendidos com esta situação calamitosa a que chegamos. Como diz o grande filósofo do nosso tempo: “O homem sempre foi um animal sem instinto!”.

Claro que nas grandes cidades e mega-metrópoles, os transportes comuns – de consórcios públicos, semi-públicos ou privados –, multiplicaram-se e desenvolveram-se mesmo muito com a proibição de acesso aos VPO. Mas eu destesto os tapetes urbanos, os magnéto-metropolitanos aéreos e o flexieléctricos de carruagens moles. Prefiro optar pelo meu mono-motor (MM) solar do que ir ao rent-a-bike , tirar a velha bicicleta enferrujada da cave ou deslocar-me de trotinete biónica. E para o overboard (skate magnético), já passei da idade!

Pelo menos, o MM negro-resina sempre tem aspecto de automóvel e eu tenho um estatuto a fazer respeitar no meu meio privado e sócio-profissional. O Mono também é prático para passar no shop&drive ou no cash&drive antes de regressar a casa no fim de um dia cansativo de labor. As desvantagens do MM é que se deve quase sempre conduzir em piloto-automático, não ultrapassa os 29km/hora e o motor é mudo. Parece que estou a conduzir um carrinho de choque das feiras para a quarta idade. É frustrante!

Durante muito tempo, não tive o direito de possuir um verdadeiro automóvel. Mas agora, a cada 60 dias, durante 182 minutos, desforro-me. Munido da minha nova licença, venho usufruir da Natureza, aproveitando para conduzir em verdadeiro asfalto, com cheiro a alcatrão e tudo, percorrer os velhos troços das estradas secundárias, há muito interditas ao trânsito, e que se destinam agora a corridas da elite que ainda possui carros a gasolina ou passeios de lazer para veículos a gasóleo com a franquia verde. É um hobby caro, eu sei, mas quero lá saber. Trabalho todas as semanas as minhas 70 horas legais também para poder usufruir de luxos como este.

Volto a subir no meu Seat Sintra G6. Ajusto o assento, girando-o em posição diagonal adaptada à condução desportiva que quero praticar. Hoje, nesta velha E125, quero tentar chegar aos 2km/minuto. É lento para uma velocidade radical, mas é o máximo autorizado na zona e esta velha peça de colecção também não dá para muito mais.

Ordeno a abertura dos vidros e do tejadilho. Solicito ao computador de bordo para poupar na temperatura interior adaptando-a à temperatura ambiente, que active o sonar telemétrico de infra-vermelhos anti-colisão e que ligue o sistema holográfico para que eu possa visualizar o itinerário seleccionado. Peço-lhe também a Nona de Beethoven, volume de som 8, periférico. Antes de arrancar, acciono o tacógrafo obrigatório, ligado à caixa negra do carro e que é passado em revista mensalmente pela CCVE, a Comissão de Controlo de Veículos Extra-urbanos. Da próxima vez, trago o meu 4x4 CRD, CitroRenault Donau, com tacógrafo traficado. Apesar de todos estes constrangimentos, conduzir depressa, fazer rugir este motor potente, levantar poeira e fumo neste meu carrinho é um prazer indiscritível. Sem o meu carrinho, nunca!

(JLC, in Contacto,
08.02.2006)

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Poema-lampo

Diz-me, Amor
onde estão o Afonso, a Inês, o Telmo e o Samuel
os quatro cavaleiros de génio do meu genesis
e o professor, o astronauta, o arquitecto,
o balde de legos, o carnaval dos pobres,
e todo o rancho da minha infância de redoma
e todo o séquito de heróis dos mundos que me inventei
transviei-me nas viagens que não fiz
nem pelo equador nem pela via láctea,
nem pelo meu quarto?...

Onde paira o marinheiro do Ó
para que lado fica o crespúsculo no montado deitado
o apartamento novo de grandes janelas indiscretas
que deixavam o sol penetrar o teu vestido
onde estão as tuas canções, as promessas vãs,
o futuro do fruto do teu ventre bom
hoje são estrume amontoado pelo chão
folhas velhas que aprodeceram
no paço vazio e sombrio do meu Outono temporão?

Diz-me amor,
se o Amor é como os figos
doce, frágil, colorido e pegajoso
mas que não consegues parar de comer
lambuzando mãos, lábios, queixo e tudo
mas pedes mais e nunca te sentes enfastiado?

Diz-me Amor,
porque me falas das mulheres que me desejam
se me lembro apenas das que me traíram,
efeitos secundários da brisa que já sopra do Lethes?


JLC010208