sebenta de anotações esparsas, pensamentos ociosos, reflexões cadentes, poemas difusos, introspecções de uma filosofia mais ou menos opaca dos meus dias (ou + reminiscências melómanas, translúcidas, intra e extra-sensoriais, erógenas, esquizofrénicas ou obsessivas dos meus dias)
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cahier de notes éparses, pensées oisives, réflexions filantes, poèmes diffus, introspections d'une philosophie plus ou moins opaque de mes journées (ou + de réminiscences mélomanes, translucides, intra-sensorielles et extra-sensorielles, érogènes, schizophrènes ou obsessionnelles de mes journées)

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Editorial no Contacto: "Donald, o 'trumpalhão'"

Em política costuma fazer-se o balanço dos 100 dias de um governo no poder para avaliar o estado de graça do mesmo. No caso da Adminisração Trump, no cargo há um mês, só se pode falar em “estado de desgraça”.

Há um mês que os EUA são (des)governados por um milionário excêntrico e trapalhão, e o seu séquito de bobos balofos, que vão acumulando gafe atrás de gafe.

Podíamos rir de tudo isto se se tratasse de uma comédia grosseira de Hollywood. A realidade por vezes ultrapassa mesmo a ficção mais absurda e o mundo assiste incrédulo e perplexo ao teatrinho grotesco das figurinhas da Administração de Donald Trump, sem estatura intelectual nem política para liderar a potência mundial que os EUA ainda são, mas em rápido descalabro e descrédito.

Com este 45° presidente, o país atingiu um cúmulo trágicómico para o qual já não há superlativos. Trágico porque as decisões e declarações de Trump e da sua equipa podem ter consequências graves e globais. Algumas já tiveram. Cómico porque os deslizes de Donald – desde erros ortográficos crassos nas mensagens que publica no Twitter até às falsas notícias que roçam o incidente diplomático – fazem-nos rir de quão ridículas são, mas também nos fazem sentir uma estranha vergonha alheia pela outrora prestigiosa Casa Branca, que parece agora entregue a um bando de labregos.

A última asneira de Trump foi quando evocou um suposto atentado terrorista que teria ocorrido sexta-feira na Suécia. A declaração foi feita durante um discurso, no sábado, na Flórida, perante milhares dos seus seguidores mais fiéis, a quem explicava a sua firme vontade de levar avante o seu decreto anti-imigração muçulmana.

Os 9,5 milhões de suecos tiveram que rebobinar para confirmar que tinham ouvido bem. De que atentado estaria Donald a falar? A ministra dos Negócios Estrangeiros sueca pediu explicações a Washington e o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros da Suécia não hesitou em tuitar: “Suécia? Ataque terrorista? O que é que ele tem andado a fumar?”, referindo-se a Trump. Os internautas suecos deram largas à sua imaginação para troçar de Donald. Um vídeo mostra um polícia sueco a interrogar um urso branco, principal suspeito do susposto atentado.

Trump explicou mais tarde, também via Twitter, que tinha visto uma reportagem na Fox News sobre o aumento da criminalidade na Suécia e que era a isso que teria feito referência.

Esta não é a primeira vez que Trump ou a sua equipa deturpam a verdade para a adaptar à sua realidade. Até encontraram uma nova fórmula para isso: “factos alternativos”. Infelizmente, quantos seguidores de Trump ouviram a declaração sobre a Suécia e quantos leram o pseudo-desmentido no Twitter? Da totalidade de eleitores que votaram em Trump em novembro, ainda há mais de 80% convictos que ele está a ser um bom Presidente e a levar a cabo tudo o que prometeu, segundo uma recente sondagem.

O mundo atura-o e arma-se de paciência. Ainda só passou um mês. Faltam 47.

José Luís Correia, in Contacto, 22/02/2017

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Editorial no Contacto: "Olhó Robô"

Esta semana, por iniciativa da eurodeputada luxemburguesa Mady Delvaux-Stehres, vai ser discutido em Bruxelas que tipo de legislação criar a nível europeu para regulamentar os robôs e a inteligência artificial.

Quando o luxemburguês Hugo Gernsback, considerado o pai da ficção científica, escreveu em 1911 o romance de antecipação “Ralph 124C 41+”, sobre um andróide no ano de 2660, nunca imaginaria que viria do seu país uma proposta pioneira para legislar sobre os robôs.

O engenheiro luxemburguês “fugira” precisamente da sua Bonnevoie natal sete anos antes por o seu país se recusar a investir numa lâmpada elétrica que ele inventara. Cem anos depois, o Luxemburgo quer-se um país voltado para o futuro, diferente do que era no virar do século XX e até há bem poucos anos. O país investiu muito na investigação e na biotecnologia, lançou-se na exploração de asteróides e vai criar uma agência espacial.

E esta semana, por iniciativa da eurodeputada luxemburguesa Mady Delvaux-Stehres, vai ser discutido em Bruxelas que tipo de legislação criar a nível europeu para regulamentar os robôs. Até que ponto queremos que os robôs facilitem a nossa vida e que regras são necessárias para que vivam e trabalhem no meio de nós? É a este tipo de questões que Bruxelas vai tentar responder. O documento prevê, por exemplo, que os proprietários de robôs sejam taxados para contribuirem para a Segurança Social, e questiona-se sobre a responsabilidade e a personalidade jurídica que deve ou não ter uma máquina.

Não são perguntas de retórica nem a pensar num futuro longíquo, é matéria que nos interpela já hoje, com robôs – uns com rosto humano, outros nem tanto – a não trabalharem apenas na indústria, mas cada vez mais em hospitais e em setores sensíveis, e brevemente no seio do nosso lar, a “pretexto” de ajudarem nas tarefas domésticas, pessoas deficientes ou idosas.

A emergência do carro autónomo, que deverá ser comercializado em grande escala até 2025, apressou os engenheiros de robótica a trabalharem com psicólogos, sociólogos e filósofos sobre os limites das decisões de uma máquina na interação com um ser humano.

Todos estes decisores, desde os engenheiros aos eurodeputados, parecem esquecer que a literatura já refletiu em muitos destes problemas éticos. Considerada um subgénero, a ficção científica foi quase sempre ignorada pela elite. A grande referência do género, o escritor Isaac Asimov, imaginou as leis robóticas num dos seus livros, em 1942, que respondem a algumas destas questões. Por exemplo, uma das leis de Asimov diz que um robô deve ser programado de forma a nunca ferir um humano, nem deixar que este se magoe; a segunda diretiva estipula que uma máquina deve sempre obedecer a um humano, excepto se as ordens entram em conflito com a primeira lei.

Confrontados com um futuro que chegou mais depressa do que imaginávamos, seria útil e instrutivo (e até lúdico) ir hoje beber inspiração onde ela nunca faltou. Um luxemburguês há cem anos e uma luxemburguesa hoje mostram o caminho.

José Luís Correia, in Contacto, 15/02/2017