sebenta de anotações esparsas, pensamentos ociosos, reflexões cadentes, poemas difusos, introspecções de uma filosofia mais ou menos opaca dos meus dias (ou + reminiscências melómanas, translúcidas, intra e extra-sensoriais, erógenas, esquizofrénicas ou obsessivas dos meus dias)
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cahier de notes éparses, pensées oisives, réflexions filantes, poèmes diffus, introspections d'une philosophie plus ou moins opaque de mes journées (ou + de réminiscences mélomanes, translucides, intra-sensorielles et extra-sensorielles, érogènes, schizophrènes ou obsessionnelles de mes journées)

quarta-feira, 15 de março de 2017

Editorial no Jornal Contacto: O eixo Roterdão-Ancara

Esta é a nova era dos populismos e até o improvável se torna possível.

Sempre defendi a adesão da Turquia à União Europeia, porque sou por uma união federalista, sem fronteiras e intercontinental, uma união que devia ir – e um dia irá, porque é inevitável – muito além da Europa. Mas não sou a favor da adesão de uma Turquia em que o Estado não está separado claramente das autoridades religiosas, e em que as liberdades fundamentais e a democracia são apenas palavras nos cartazes das campanhas eleitorais, cuja cor se esbate menos depressa do que as promessas dos candidatos pseudodemocratas.

Por um lado, parece que a sociedade turca se ocidentalizou muito nas últimas décadas, e reivindica cada vez mais um lugar legítimo na União Europeia. Por outro, as derivas do regime ditatorial de Recep Erdogan são incompatíveis com os valores em que assenta a Europa.

A Europa precisa da Turquia e vice-versa, e cada lado parece fazer compromissos, como no acordo firmado para atenuar a crise dos refugiados e dos migrantes. Mas é cada vez mais difícil aturar o autoritarismo e o nacionalismo de Erdogan, que não permite qualquer contestação política. A mão de ferro com que o golpe de Estado fracassado de julho último foi jugulado não deixa margens para dúvidas. Basta esperar que num país em que nos últimos 40 anos já houve três golpes de Estado e uma tentativa, o movimento anti-Erdogan volte ao contra-ataque. Em prol de uma Turquia laica, europeísta, progressista, como Atatürk a sonhou.

Erdogan não tem nada de Atatürk, mesmo se se vê como o novo paladino da nação. Com ele, tudo é jogo político. E até se dá ao luxo de brincar com a Europa. No sábado, enviou dois ministros a Roterdão para participar num comício pró-Governo de Ancara, em plena campanha para as legislativas holandesas, impregnadas pelo discurso anti-muçulmano de Geert Wilders. Erdogan sabia perfeitamente que a presença dos governantes iria gerar polémica (ou pior). Foi provocação ou reaproveitamento político? Erdogan tão bem usa o populismo interno a seu favor como o populismo externo contra si, para justificar o poder autoritário que exerce.

A Holanda proibiu a entrada dos ministros turcos para não acender o rastilho com que a extrema-direita anda a brincar. Mas a Europa não reagiu.

A Holanda, que vai hoje a votos e onde a extrema-direita de Wilders nunca esteve tão bem nas sondagens. Mas ganhar as eleições parece impossível e fazer parte do próximo Governo ainda mais. Pelo menos, matematicamente. Mesmo se Wilders subiu nas sondagens, num parlamento com 150 assentos, pode vir a conquistar no máximo um quinto, já estimando as últimas sondagens em alta. Mesmo assim será insuficiente para governar sozinho. Os outros partidos que lideram as sondagens podem até obter menos votos que Wilders, mas nenhum deles quer uma aliança com o diabo.

Vai a Holanda, conhecida por ser tolerante, aberta, precursora e defensora das liberdades individuais, intrinsecamente anti-Trump, deixar-se polarizar pela questão da crise dos refugiados e pelo discurso anti-Islão de Wilders, e virar-se para a extrema-direita pró-Trump? Seria contranatura. Mas esta é a nova era dos populismos, em que já percebemos que tudo é possível. Mesmo o improvável e o impensável.

José Luís Correia
in Contacto, 15.03.2017

quarta-feira, 8 de março de 2017

Oito de março

Hoje, 8 de março, assinala-se o Dia Internacional da Mulher. Apesar dos progressos de que tanto nos regozijamos nos países ocidentais, ainda estamos longe da igualdade de direitos.

A palavra japonesa “shufu” designa a doméstica, a mulher que casando, renuncia a trabalhar e fica em casa para tratar dos filhos, do marido e do lar. Shufu é cada vez mais na sociedade nipónica sinónimo de “josei”, a palavra japonesa para mulher. A mulher subalterna, obediente e serviçal. Se o Japão é considerado um dos paises mais evoluídos do mundo, então deveríamos reconsiderar o seu grau de civilização pela forma como trata as mulheres. Seria interessante ver o novo ranking do país do sol nascente.

Não caiamos num etnocentrismo fácil e reflitamos no papel das mulheres na nossa sociedade, onde muitas delas trabalham oito horas ou mais por dia, mas depois chegam a casa e têm a lida da casa à sua espera, o jantar, a loiça, a roupa, porque o marido está na “bricola”, no sofá a ver futebol ou no café a relaxar. Porque muita gente ainda pensa assim: o homem trabalha, a mulher trata da casa, é assim desde Matusalém.

Questionemo-nos então se é mais iníquo ser como os japoneses ou condenar a mulher a um “duplo dia”? O Japão é apenas um exemplo, porque infelizmente na maioria dos países as mulheres efetivamente não gozam dos mesmos direitos que os homens. Nem falemos no caso de muitos países muçulmanos, que se apoiam na religião para justificar a forma como a lei (des)trata as mulheres.

Por vezes, a discriminação de que as mulheres são vítimas existe quase de forma velada, senão invisível, nos “territórios” que já parecem conquistados à causa, como nos nossos países ocidentais na questão das tarefas domésticas não partilhadas. Ou na questão da diferença salarial que parece resolvida, depois de tantos países europeus terem legislado na matéria. Mas não.

Portugal foi um dos países onde a diferença salarial entre homens e mulheres mais aumentou na UE entre 2010 e 2015, segundo um estudo do Eurostat divulgado esta terça-feira. O Luxemburgo está no top-3 dos bons alunos neste estudo.

Mas até no Luxemburgo, onde podíamos pensar que a luta das mulheres pela igualdade de tratamento parece evoluir, damo-nos conta que ainda falta percorrer um longo caminho. Sobretudo quando algo tão anódino como o preço de acesso a uma casa de banho pública na estação central dos caminhos de ferros da cidade do Luxemburgo desmente esses progressos e, longe de ser anedótico, se torna sintomático e revelador.

A luta das mulheres pela igualdade de direitos remonta ao século XIX, mas só em 1945 a ONU adotou uma carta de princípios que estabelecem a igualdade entre os géneros. Entretanto, já passaram 72 anos! Setenta e dois! E, infelizmenre, só se continua a falar da igualdade de géneros uma vez por ano, por ocasião do Dia Internacional da Mulher. A verdadeira vitória será quando deixar de haver Dia da Mulher.

José Luís Correia
in Contacto de 08/03/2017

quinta-feira, 2 de março de 2017

O ágora dos estrangeiros

O Festival das Migrações foi no passado o palanque público onde os estrangeiros reivindicavam direitos. Chegou a ser ponto de passagem obrigatório para políticos, representantes de partidos e mesmo do Governo. Agora, já não. Porquê?

O Festival das Migrações já não é o que era. Por um lado, temos de constatar que o certame melhorou materialmente. A casa onde o festival recebe anualmente 30 mil visitantes é mais digna desde que em 2005 o festival se instalou na Luxexpo, em Kirchberg.

Quem se lembra do vetusto e exíguo hall Victor Hugo, onde os então cerca de 80 stands (hoje são 400!) se empoleiravam uns em cima dos outros e o então recém-nascido Salão do Livro e das Culturas (criado em 2001) era relegado para uma tenda no exterior, impedido de crescer.

Sem falar no estacionamento “selvagem” de responsáveis dos stands e dos então 20 mil visitantes que invadia ruas e passeios do Limpertsberg, para indignação dos moradores do bairro e gáudio dos agentes comunais que passavam três dias a emitir multas.

O certame também melhorou na qualidade e na diversificação da oferta. Não só há mais expositores, mas há mais países e associações representados, mais stands gastronómicos, mais artistas e grupos musicais em cima e fora do palco. E o Salão do Livro ganhou em 2013 um irmão mais novo, o Artsmanif, onde artistas plásticos do Grão-Ducado e da Grande Região, que procurem uma montra, podem resgatar as suas obras do anonimato dos seus ateliês.

Mas se o Festival das Migrações ganhou em todos estes campos parece que o CLAE, o Comité de Ligação das Associações de Estrangeiros, que organiza o certame desde o início dos anos 80, parece ter desistido da luta política. Ou pelo menos, afrouxo o ritmo da luta.

O festival, através das associações afiliadas ao CLAE, começou no final da década de 80 por ser um palanque público onde os estrangeiros reivindicavam o direito de voto nas eleições comunais e legislativas. Foi ponto de passagem obrigatório para políticos, representantes de partidos e mesmo do Governo.

Nos anos 90 a luta não desarmou e nos sucessivos festivais dessa década o direito de voto nas comunais era tema recorrente. No festival, as palestras sobre o tema multiplicavam-se, o visitante interessado não conseguia “ir a todas”, os debates eram animados e inflamados. Em 1999, os estrangeiros puderam votar pela primeira vez nas eleições locais.

É essa índole reivindicativa e de espaço público de discussão dos temas atuais, sociais e políticos fraturantes, que tem faltado às recentes edições do festival. É disso que muitos visitantes se queixam, de o certame se contentar em ser apenas “festivaleiro”. Talvez isso seja o reflexo da falta de verbas de que o festival sempre sofreu.

Este ano, o CLAE quer insistir na sensibilização junto dos residentes estrangeiros para que se inscrevam nos cadernos eleitorais por forma a poderem votar nas eleições comunais de outubro próximo. Que ferramentas, que argumentos de sensibilização, que campanha tem o CLAE previsto? Que verba? Só vontade não chega. E o Governo não ajuda.

José Luís Correia
in Contacto, 01/03/2017