A guerra do Biafra marcou a estreia de Bernard Kouchner, actual chefe da diplomacia francesa, na arena humanitária e política internacional, como principal paladino do conceito de “direito de ingerência”.
Bernard Kouchner, jovem médico francês em missão para a Cruz Vermelha francesa, insurgiu-se no Biafra contra o código de neutralidade das agências humanitárias, preconizando o direito, e o dever, de ingerência de outros países em protecção de populações civis.
Kouchner esteve no Biafra em três missões, em 1968 e 1969. A 28 de Outubro de 1968, rompendo a reserva imposta pelo Comité Internacional da Cruz Vermelha, Kouchner e o chefe da missão, Max Récamier, escreveram uma coluna no jornal “Le Monde”, assumindo o partido dos rebeldes ibo do Biafra.
No “Nouvel Observateur” de 17 de Janeiro de 1970, Bernard Kouchner escreveu outro artigo, sob o título “Um Médico Acusa”, em que interroga “como é que se pode ser de esquerda e deixar massacrar dois milhões de indivíduos?”
“O massacre dos biafrenses é o maior massacre da história moderna depois do massacre dos judeus, não o esqueçamos. Isso quer dizer que o massacre de milhões de homens não tem dimensão política?”, perguntava também o médico francês.
“A esquerda, se ainda existe uma, fechou os olhos. A sua preocupação é simples: as pessoas que morrem são de esquerda?”, concluía Bernard Kouchner.
“O Biafra não foi a primeira guerra ideológica, mas é um exemplo muito recuado da teoria de que Kouchner se tornou mais tarde campeão”, afirmou John Laughland, director do Instituto de Democracia e Cooperação, uma fundação de estudos internacionais com centros em Paris e Nova Iorque.
“Kouchner e a teoria do direito de ingerência tiveram grande influência na posição da França na Guerra da Bósnia, em 1992-1994, e também, logo a seguir à primeira Guerra do Iraque, em 1991, no estabelecimento de zonas de interdição aérea e no bombardeamento pelos EUA e Reino Unido”, acrescentou John Laughland, entrevistado pela Lusa em Paris, quando se assinalam 40 anos após o fim da crise do Biafra.
Resultado directo da posição de Bernard Kouchner no conflito do Biafra e da crítica da neutralidade em situações de agressão a civis, Kouchner fundou a organização Médicos Sem Fronteiras, em 1971. Uma década depois, e em divergência com os MSF, fundou outra organização humanitária, os Médicos do Mundo.
A carta dos MSF incluiu, com a oposição de Kouchner, um princípio inspirado na Cruz Vermelha, sobre a obrigação de o pessoal médico “respeitar o segredo profissional e abster-se de emitir julgamento ou de exprimir uma opinião (…) sobre os acontecimentos, as forças e os dirigentes que aceitaram a sua ajuda”.
O direito de ingerência, rapidamente identificado como “ingerência humanitária”, viria a ser objecto do livro “Devoir d’Ingérence”, de Bernard Kouchner, em 1987, secundado, em termos académicos, pelo especialista de direito internacional Mario Bettati, da Universidade Paris II.
“Para Kouchner, o humanitarismo neutral é uma charada. Ele tornou-se o campeão da guerra justa, de que o melhor exemplo é o Kosovo” e os bombardeamentos da NATO sobre a Jugoslávia, em 1999, nota John Laughland, que cita também o envolvimento do actual chefe da diplomacia francesa na questão curda.
O direito de ingerência, nota John Laughland, “não tem nenhuma base em termos de direito internacional” e “veio, pelo discurso político, derrogar princípios de intervenção humanitária que existem há 150 anos”.
O especialista recorda outra das críticas recorrentes à “ingerência humanitária”: “Introduz conceitos supranacionais para justificar actos unilaterais, como a segunda invasão do Iraque”.
Pedro Rosa Mendes,
para a Agência Lusa