sebenta de anotações esparsas, pensamentos ociosos, reflexões cadentes, poemas difusos, introspecções de uma filosofia mais ou menos opaca dos meus dias (ou + reminiscências melómanas, translúcidas, intra e extra-sensoriais, erógenas, esquizofrénicas ou obsessivas dos meus dias)
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cahier de notes éparses, pensées oisives, réflexions filantes, poèmes diffus, introspections d'une philosophie plus ou moins opaque de mes journées (ou + de réminiscences mélomanes, translucides, intra-sensorielles et extra-sensorielles, érogènes, schizophrènes ou obsessionnelles de mes journées)

sábado, 22 de março de 2008

O que estou a ler: "The Coffee Trader", de David Liss

História do português que quis ser o senhor do café

1659 - Obrigado a exilar-se em Amsterdão e após um desastroso desaire financeiro na Bolsa, um judeu português deixa-se seduzir por uma misteriosa holandesa pouco recomendável que o vai levar a descobrir uma bebida que até aí pensava apenas receitada para uso medicinal. O líquido de bréu (o Papa chama-lhe "a bebida do Demo") proveniente do esmagamento astucioso dos grãos pretos numa mistela à qual se acrescenta água ou leite (e não vinho!, como o protagonista neófito virá a fazer a amarga experiência) deixa um travo forte e aveludado na língua, um misto agri-perfumado nas papilas e acende os sentidos, apura-os.

Ahhhh... O café não enfeitiça nem entorpece como o vinho. Bem pelo contrário, excita o sangue nas veias, faz pulsar as têmporas, rufar o peito, irrompem ideias acotovelando-se pelo pensamento, efervescem aos empurrões as sensações, impertinentes, insolentes. É o efeito secundário do café ou nosso verdadeiro ego libertando-se dos pudores morais e sociais? Que fazer quando a extremosa esposa do irmão, ébria da cafeína de alguns grãos furtados ao saco que ele deixara no seu quarto inadvertidamente, o interpela sem recato e despudorada se declara a ele?

A holandesa vai persuadir o português a investir no café, numa verdadeira operação de especulação bolsista, digna de um golden boy de Wall Street. Como já não tem quase nada a perder, o judeu aceita e planeia tudo: desde as manigâncias pelos becos escuros e enlameados da cidade do Amstel até à encomenda arriscada que faz à mui poderosoa Companhia das Indias, que detém o monopólio do comércio do café com o Oriente, donde provém essa novidade bizarra. Quando as caravelas chegarem com a enorme quantidade de café encomendada em seu nome, comerciantes contratados pelo português nos quatro cantos da Europa vão comprar todo o café existente nos principais portos do continente, exactamente na mesma data. O valor do café vai subir e ele, único dono e senhor de todo o café da Europa, vai vendê-lo ao preço que muito bem lhe apetecer. Nenhum comerciante poderá fazer-lhe concorrência e mesmo que a Companhia das Indias queira reagir, os seus navios com novos carregamentos de café só chegarão muitos meses depois. O tempo suficiente para ele fazer fortuna.

Mas será que o Ma'amad, o temível Conselho dos Judeus, vê com bons olhos esse negócio entre um digno filho de Israel e uma vil holandesa? Sem contar com os seus inimigos e credores, que de uma viela ou do quarto ao lado, o espiam, perseguem, e ameaçam fazer falhar "o golpe do século"...

"The Coffee Trader", David Liss (Random House, New York, 2003)

sexta-feira, 21 de março de 2008

O talão de Aquiles das Olimpíadas chinesas ou como restabelecer tréguas olímpicas pelo Tibete

Tanto que a China lutou por estas Olimpiadas e nem o seu genuino valor ideológico percebe ou quer entender. Até que ponto o Comité Olímpico Internacional se deixou prostituir, violou a ideologia original do que os Jogos pretendem ser e é conivente com essas ambições puramente comerciais e de propaganda política do governo central de Pequim?

Quando foram instituídos pelos Gregos, na Antiguidade, os Jogos Olimpicos eram tempo de tréguas nas sempiternas guerras fractricidas entre Esparta, Atenas e outras cidades-estado gregas. As tréguas eram respeitadas porque todos acreditavam que valores mais altos se alevantavam: a sublimação do Homem enquanto ser que almeja a perfeição. Ir mais longe, mais alto, ser mais forte, "sitius, altius, fortius", como os romanos mais tarde viriam a dizer.
Hoje, perdeu-se esse espírito.

É inadmissível a opressão militar que a China, na sua ambição imperalista e dominadora, impõe a um Tibete que era independente há muito e recusa teimosa em negociar com o Dalai Lama, que trata de terrorista separatista.

Eu era inicialmente contra a atribuição dos JO à China. Mas talvez estes sirvam para encontrar uma solução à crise no Tibete e às violações dos direitos do Homem de que aquele regime é regularmente protagonista. É utópico sonhar que estes JO sejam o rastilho de uma China democrática? Uma China que viola diariamente os direitos fundamentais do ser humano, da liberdade de imprensa e abafa com um punho de ferro todos os contestatários. A mesma China que atacou uma manifestação de estudantes na praça de Tien An Men em 1989 com tanques. Uma sui generis ditadura opressora de extrema esquerda que consegue fazer a espargata com o capitalismo selvagem.

Exposta nessa vitrine mundial privilegiada que os JO oferecem, a China terá percebido tarde demais que essa glória não tolera posições ditatoriais e autistas e custa o preço de certas cedências políticas. A não ser que o Império do Meio queira definitivamente dar um tiro no pé (de barro?), arriscar um boicote maior do que os que afectaram os JO de Moscovo (1980) e de Los Angeles (1984), no que se tornaria um desaire financeiro e comercial para o país e a pior Olímpiada de que a Era Moderna teria memória. A questão é infelizmente apenas económica. Pode a China pagar essa factura de má publicidade?

Para os que acreditam que estes JO podem fazer avançar as coisas e que todos nós podemos fazer a diferença, deixo aqui uma petição a assinar por um Tibete independente.