sebenta de anotações esparsas, pensamentos ociosos, reflexões cadentes, poemas difusos, introspecções de uma filosofia mais ou menos opaca dos meus dias (ou + reminiscências melómanas, translúcidas, intra e extra-sensoriais, erógenas, esquizofrénicas ou obsessivas dos meus dias)
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cahier de notes éparses, pensées oisives, réflexions filantes, poèmes diffus, introspections d'une philosophie plus ou moins opaque de mes journées (ou + de réminiscences mélomanes, translucides, intra-sensorielles et extra-sensorielles, érogènes, schizophrènes ou obsessionnelles de mes journées)

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Editorial no Jornal CONTACTO: "A civilização no retrovisor"

Os acontecimentos dos últimos tempos dão a impressão que estamos a viver um retrocesso civilizacional.

Como é possível que no século XXI ressurjam crenças bacocas de tempos obscuros que julgávamos definitivamente volvidos, como por exemplo a teoria da Terra plana, que põem em causa as descobertas científicas dos últimos séculos? Seria irrisório se não ganhassem cada vez mais adeptos entre cantores, artistas ou gente da televisão que têm uma real influência nos jovens e nas massas. O mais recente é o rapper B.o.b, autor do sucesso “Airplanes”, que tem multiplicado mensagens na sua conta no Twitter de como “a elite” nos anda a “enganar” com a “teoria da Terra redonda”. Hein?

A esfericidade do planeta era já conhecida por matemáticos e filósofos gregos como Pitágoras e Parménides desde o século VI antes de Cristo. Eratóstenes chegou mesmo a medir a circunferência do globo três séculos mais tarde. Até a Bíblia fala da rotundidade do mundo (Isaías 40:22; Provérbios 8:26, etc.). Mais de 2000 anos depois, entre 1966 e 1972, as primeiras “selfies” que os astronautas da NASA fizeram à Terra – berlinde azul pálido suspenso na imensidão do espaço –, maravilharam a Humanidade. Tanto caminho percorrido para nada?

Propaladas nas redes sociais, com vídeos apelativos, sabiamente montados, deixando de lado uns pormenores em detrimento de outros, essas pseudo-teorias vão embalando (endoutrinando) um público preguiçoso em verificar o que lhe dizem, até ao ponto de negarem verdades científicas. Ciência não é opinião!

A internet não é boa nem má, como qualquer ferramenta depende do uso que faz dela o Homem. Por vezes, faz sobressair o pior que há em nós, julgamos no imediato, criticamos, condenamos, maldizemos, insultamos, como se o facto de nos refugiarmos num semi-anonimato nas redes sociais (que não existe, perguntem a Edward Snowden) nos permitisse dizer tudo. Mas esquecemos que não ficamos ao abrigo da nossa própria natureza humana, que é a verdadeira causa do que espalhamos, seja o bem ou o mal. Será que ainda sabemos distinguir entre os dois?

É de de uma tristeza profunda continuar a ver comentários de pura maldade nas redes sociais sobre quem tanto sofre, fugindo da guerra, da fome ou da miséria, refugiados e migrantes, que afinal somos todos, de uma forma ou de outra.

Pior ainda quando a crueldade é institucionalizada, porque se transveste de legítima. Países que costumam ser exemplo de progresso social como a Suécia, a Dinamarca, a Alemanha ou a Suíça, anunciam agora que vão confiscar os bens dos migrantes e refugiados que ali chegaram à procura de asilo, no que é uma clara violação dos mais elementares direitos humanos.

Despir um ser humano dos farrapos que tem para mais tarde o acusar de roubar uma camisa é politicamente correcto? E humanamente, é o quê? Se alguém nos pede ajuda na rua, pedimos-lhe primeiro que esvazie os bolsos antes de decidir socorrê-lo?

Todos os países vivem um recuo das liberdades, um regresso dos nacionalismos, dos proteccionismos, da desconfiança face ao forasteiro. Quanto mais pequena se torna a nossa aldeia global mais suspeitamos do vizinho.

Nos EUA, um dueto que podia parecer cómico – Donald Trump e Sarah Palin – está a preocupar o mundo, ao seduzir milhões com discursos populistas, manipuladores e que se alimentam do medo dos estrangeiros, isto no país do ’melting-pot’. Chegarão à Casa Branca? Imagem aterradora.

Quem somos? O que somos? No que nos tornámos? Não aprendemos nada com os piores episódios da Humanidade no século passado? Ainda há 70 anos, depois de os nazis assassinarem e espoliarem milhões de pessoas, jurámos: “Nunca mais!”. Uma promessa feita a nos próprios, mas já esquecida. Qual é a próxima derrapagem na nossa queda?

O século XX mostrou o melhor e o pior do que somos capazes. Deste século e de nós, o que contarão os nossos filhos e netos?

A verdadeira natureza de um homem vê-se na adversidade. A da Humanidade também. Não é preciso dizer que neste momento não ficamos bem na fotografia.

Ao mesmo tempo que a tecnologia avança parece recuar o nosso bom senso e inteligência. Esta regressão societal e cultural é um sinal de que estamos num momento em que o paradigma civilizacional está a mudar, como o previram (e preveniram) Samuel Huntigton, Francis Fukuyama e até Alvin Toffler.

Depois do declínio militar, económico e cultural do Império, os romanos do século V sentiram, com anos de antecedência, a invasão iminente dos germânicos e o fim do seu mundo.

É este o nosso sentimento hoje perante a barbárie dos radicais islâmicos? Esquecermos os nossos valores mais fundamentais face ao medo e à ameaça não é o primeiro passo em falso para nos perdermos? Mas se perdermos isso, eles já venceram.

José Luís Correia,
in CONTACTO, 03/02/2016

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