Um escândalo de proporções mundiais está a varrer o planeta. O nome singelo de “Panama Papers”, como se de meros papéis largados ao vento se tratasse, não deixa vislumbrar só pela designação a amplitude do conteúdo dos documentos, que revelam a mais colossal fuga ao fisco de todos os tempos. Maior do que os casos Wikileaks (2010), Offshoreleaks (2013), Prism (2013), LuxLeaks (2014) ou Swissleaks (2015) juntos.
Um informador anónimo, com o nome de John Doe (o equivalente ao Zé Ninguém, em português), enviou na Primavera de 2015 ao jornal Süddeutsche Zeitung (SDZ) 11,5 milhões de documentos, cerca de 2,6 terabytes de informação, o equivalente a 2.600 gigabytes (ou simplesmente "gigas"), ou seja, a capacidade de armazenamento total de 20 computadores portáteis de 128 gigas ou de 162 telemóveis de 16 gigas. “Dava para encher 700 mil bíblias”, compararam os jornalistas do diário alemão.
As centenas de milhar de dossiers provenientes do escritório de advogados panamiano Mossack Fonseca (cuja filial Mossfon no Luxemburgo se situa na rue des Bains, na capital) mostram como 214 mil empresas dos cinco continentes, celebridades, chefes de Estado, de Governo, políticos, partidos, desportistas, milionários, nomes mais ou menos famosos, de Vladimir Putin ao primeiro-ministro islandês, de Michel Platini a Lionel Messi, mas também muitos anónimos, praticam impunemente há décadas a evasão fiscal.
No Luxemburgo, 405 empresas e instituições bancárias estão envolvidas no escândalo, incluindo o até agora insuspeito banco luxemburguês BIL. Os documentos abrangem 40 anos, de 1975 a 2015, e para poder analisar tudo a SDZ teve que partilhar os dados com uma centena de jornais de 76 países, que puseram 400 jornalistas a cruzar dados e a verificar as informações durante um ano.
A procissão ainda vai no adro e os jornais prometem mais revelações em todas as edições diárias das próximas duas semanas. Todos os números deste escândalo são abismais, mas o que provoca vertigens é o ar fleumático, quase indiferente, com que alguma opinião pública recebeu a notícia.
Na Islândia houve já manifestações a pedir a demissão de membros do Governo, que de “salvadores da crise” passaram a figurar como cúmplices da bancarrota que afundou o país em 2008. A justiça francesa já abriu um inquérito para averiguar as empresas e residentes nacionais envolvidos no caso.
Mas o sentimento geral é que mais uma vez, além de um punhado de nomes que deverão ser largados na praça pública para expiar a pena colectiva, a culpa vai morrer solteira e a maioria dos implicados vai safar-se. Como sempre.
Primeiro vai começar a falar-se em democracia, liberdade, livre-comércio, discrição e segredo profissional, que as empresas off-shore embora operem a curta distância do que é ilícito, agem dentro da legalidade. Os dedos reprovadores vão virar-se contra o mensageiro, como aconteceu com Julian Assange (Wikileaks), Edward Snowden (Prism) ou Antoine Deltour (Luxleaks). Bem fez John Doe em assinar Zé Ninguém, não vá a Justiça, que sofre de cegueira, como todos sabemos, mais uma vez enganar-se de réu. Mais cego é quem não quer ver.
Mas não devíamos ficar indolentes perante isto tudo, porque o mais iníquo e criminoso é que quem acaba por ter que pagar esta gigantesca fraude somos todos nós. Se o dinheiro não vem de um lado, vão buscá-lo a outro, sobem os impostos, aumentam as taxas, pagamos todos por tabela.
Coincidência ou não, tudo isto acontece a 24 horas de distância de escutas telefónicas feitas no FMI em que os dirigentes discutem a ideia de ameaçar a Grécia com uma nova crise financeira para garantir que este país pague as suas dívidas mais depressa.
Mas afinal, quem manda? Já entrámos na era do pós-capitalismo anunciado por Colin Crouch (2004), o que Jacques Attali (2006) designa por hiper-capitalismo? São as directivas dos conglomerados comerciais e das agências de notação que, levados pela voracidade dos accionistas, se sobrepõem à vontade dos eleitos e dos Estados? Vivemos em simulacros de democracia se é um grupo de não-eleitos que manda nos eleitos.
Fiquemos pela Grécia, onde nasceu essa tal de democracia. Horas depois de as escutas do FMI serem reveladas, de uma praia grega zarpava o primeiro barco com refugiados deportados para a Turquia, sem uma única garantia de Ancara de que não os reenviará para os seus países, numa clara violação da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais e da Convenção de Genebra sobre os Refugiados de 1951, de que a UE e a Turquia são ambas signatárias. Nos artigos 18 e 19 dessa carta europeia, a UE diz-se solenemente contra as “expulsões colectivas”.
O que significa ainda a UE se for esvaziada dos seus valores, o que representa? Se basta a Angela Merkel acertar com o primeiro-ministro turco Ahmet Davutoglu, numa reunião a dois, os termos e a data das deportações dos refugiados, para que servem Jean-Claude Juncker, Herman von Rompuy, Donald Tusk e a própria União Europeia? A UE é a Alemanha e o resto é paisagem.
E será que as escutas do FMI e as deportações ilegais de refugiados vão ter tempo de antena nos media, perante o tsunami de informações dos Panama Papers?
José Luís Correia
in CONTACTO, 06.04.2016
quinta-feira, 7 de abril de 2016
EDITORIAL no Jornal CONTACTO: Panama Leaks e outras derivas
Rótulo :
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