sebenta de anotações esparsas, pensamentos ociosos, reflexões cadentes, poemas difusos, introspecções de uma filosofia mais ou menos opaca dos meus dias (ou + reminiscências melómanas, translúcidas, intra e extra-sensoriais, erógenas, esquizofrénicas ou obsessivas dos meus dias)
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cahier de notes éparses, pensées oisives, réflexions filantes, poèmes diffus, introspections d'une philosophie plus ou moins opaque de mes journées (ou + de réminiscences mélomanes, translucides, intra-sensorielles et extra-sensorielles, érogènes, schizophrènes ou obsessionnelles de mes journées)

quinta-feira, 19 de março de 2015

Dossier: Imigração portuguesa para o Luxemburgo começou há 50 anos (3/4)

Maria José Donven Foto: Guy Jallay/LW
Maria José Donven: Primeira funcionária do Consulado chegou ao Luxemburgo em 1963 

A lisboeta Maria José Rodrigues de Abreu Donven foi uma das primeiras portuguesas a chegar ao Grão-Ducado, em 1963. Foi a primeira secretária do Consulado de Portugal, inaugurado em 1966.

“Quando eu era jovem não tinha a noção do que era a emigração. O meu pai era enfermeiro a bordo de um navio, estava sempre fora, e eu meti na cabeça, desde miúda, que também queria ver o mundo. Já adulta, conheci uma americana que tinha estado no Luxemburgo. Eu queria aprender francês e ela disse-me que no Luxemburgo se falava essa língua. Arranjou-me a morada de uma família de cá, que precisava de uma ‘fille-au-pair’ (ama), eu escrevi-lhes e mandaram-me vir. Eu queria voar, não me interessava para onde. Cheguei cá com 19 anos, no dia 5 de Março de 1963. Nevava tanto nesse dia... Eu não gostava de ser ‘fille-au-pair’ e depressa encontrei trabalho no Monopol, como grafista-decoradora. Em 1963, o Luxemburgo estava a celebrar o ’Ano do Milénio’ [o Condado do Luxemburgo foi fundado em 963], e como eu sempre tive jeito para o desenho, o meu primeiro trabalho no Monopol foi desenhar uma centena de cartazes com figuras da Idade Média para decorar as montras das lojas do grupo, que assinalavam a data. Estive lá três anos.”

Perguntamos-lhe como surgiu a oportunidade de trabalhar no Consulado. “Antes de chegar o cônsul José Mendes-Costa, havia um cônsul honorário de Portugal, o senhor Jean Turk [1919-2013], que tinha sido engenheiro da Arbed em Manaus, no Brasil [foi nomeado cônsul honorário em 17 de Agosto de 1959]. Quando começaram a chegar portugueses ao Luxemburgo iam bater-lhe à porta de casa, na rue Michel Lentz, no Limpertsberg, aos fins-de-semana e até de noite, coitado! Ele pediu-me para o ajudar a receber os portugueses. Quando começou realmente a ser muita gente, ele contactou Portugal para resolverem a situação. Foi aí que em 1965 o Mendes-Costa veio destacado de Antuérpia [na Bélgica], mas continuava a depender da Embaixada de Bruxelas. Só em 1966 é que foi nomeado cônsul de Portugal no Luxemburgo. Como eu já tinha trabalhado com o Jean Turk, o Mendes-Costa propôs-me trabalhar no Consulado. Só havia ele e eu, não havia dinheiro para mais [risos]. Bem, na realidade, eu nunca percebi muito bem aquelas contas, porque o Consulado funcionava na residência privada do cônsul, na rue d’Orange [na cidade do Luxemburgo] e eu nunca soube se foi ele que comprou a casa ou se foi o Estado português. O facto é que a casa dele estava muito bem mobilada, com móveis do melhor, como se fosse uma embaixada”, lembra. “Eu nunca compreendi muito bem aquele senhor”, confia Maria José.

“Ele era muito estranho, muito religioso, muito místico. Nem sei se ele era muito ‘Estado Novo’, tinha que representar o Estado português, era o papel dele. Lembro-me que um dia veio cá o embaixador de Portugal em Bruxelas e durante um jantar alguém comentava o problema do analfabetismo em Portugal. O embaixador levantou-se da mesa muito imperioso e disse: ’O povo é analfabeto e que Deus o guarde assim por muito tempo!’. Nós ficámos envergonhadíssimos, mas o cônsul subscreveu o que o embaixador tinha dito”, recorda Maria José.

“Ele era muito inteligente, mas era uma inteligência tortuosa, não sei se devido ao defeito dele – ele era muito vesgo, vesgo divergente, as pessoas não conseguiam olhá-lo nos olhos. Era também muito baixo, o que o complexava muito. Ele achava-se um intelectual e escreveu vários livros, em edições de autor, que depois enviava para todo o lado, incluindo para os ministérios luxemburgueses”. Algumas das obras podem ser encontradas na Biblioteca Nacional do Luxemburgo.

“O Mendes-Costa era natural de Oliveira do Hospital e apesar de haver muita gente aqui dessa região, as relações dele com a comunidade eram distantes. Ele gostava de estar com os portugueses, mas não tinha a empatia necessária. Era uma pessoa que se deixava muito impressionar pelos títulos”, recorda Maria-José, que não resiste a contar-nos um dos episódios que viveu com o diplomata.

“Um dia veio um chinês de Bruxelas, que disse que era mestre de conferências e que era português, porque a mãe tinha nascido em Macau. Mas não falava português, só francês. Não tinha certidão de nascimento porque, disse, a igreja em Macau onde tinha sido baptizado ardera. Eu disse que não o podia ajudar e ele quis falar com o cônsul. Eu não sei o que ele lhe disse, mas o cônsul veio-me dizer para lhe fazer um passaporte para cinco anos. Ora, na altura, quando havia dúvidas sobre a nacionalidade, havia duas testemunhas que diziam que conheciam aquela pessoa, fazia-se um passaporte por três meses, para que a pessoa voltasse a Portugal e regularizasse a situação. Como o ’chinês’ não tinha ninguém que o conhecesse ali, o cônsul foi à sala de espera, pediu a dois portugueses que servissem de testemunhas e depois deu-me o passaporte para eu assinar – porque entretanto ele tinha-me feito chanceler para a ‘casa’ funcionar quando ele se ausentava. Mas eu recusei assinar e disse-lhe: ‘Então, vêm aí portugueses com o passaporte caducado há dois meses e o senhor faz-lhes tantos problemas? E a este homem, que não tem documentos nenhuns, vai dar-lhe um passaporte por cinco anos? Eu não assino isto!‘. E teve que ser ele a assinar”, conta, entre risos, Maria José.
Foto com um grupo de estudantes portugueses, no início dos anos 1970. Maria José Donven (ao centro); ao seu lado direito, o cônsul José Mendes-Costa; atrás deste, o padre Manuel Fernandes (de óculos), o primeiro sacerdote português a vir para o Luxemburgo; em baixo, com um "papillon", Jean Barnich, filho de Marcel Barnich (do Serviço Social da Imigração) Foto: Arquivo Maria José Donven

Apesar de nem sempre se entender com o cônsul, não foi isso que a fez sair do Consulado, em 1970. “Saí porque fiquei grávida e porque casei”. Recorda-se que quando deixou o posto, havia 11 mil portugueses inscritos no Consulado de Portugal no Luxemburgo. Mais tarde, conta, foi uma das principais mobilizadoras da manifestação que pediu a demissão de Mendes-Costa, logo a seguir ao 25 de Abril. O diplomata viria a ser substituído em 31 de Janeiro de 1975 pelo cônsul Manuel Gervásio Martins de Almeida Leite.

Maria José diz que nunca foi muita associativa, mas lembra-se da aventura de ter fundado uma revista com Mili Tasch-Fernandes (ver artigo aqui).

Depois disso, casou e criou dois filhos. Um é bibliotecário, o outro escultor. Ao fim de 52 anos de imigração, Maria José diz que “arranha um pouco o luxemburguês”, “e bëssen“ (um pouco). “Tenho um conhecimento passivo do luxemburguês, consigo responder com frases curtas, mas não consigo desenvolver conceitos”. Hoje, aos 71 anos, o nome de família fá-la passar aos olhos de muitos por luxemburguesa, mas ela, riso largo e aberto, faz questão de os esclarecer.

José Luís Correia
in CONTACTO, 11/03/2015

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