sebenta de anotações esparsas, pensamentos ociosos, reflexões cadentes, poemas difusos, introspecções de uma filosofia mais ou menos opaca dos meus dias (ou + reminiscências melómanas, translúcidas, intra e extra-sensoriais, erógenas, esquizofrénicas ou obsessivas dos meus dias)
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cahier de notes éparses, pensées oisives, réflexions filantes, poèmes diffus, introspections d'une philosophie plus ou moins opaque de mes journées (ou + de réminiscences mélomanes, translucides, intra-sensorielles et extra-sensorielles, érogènes, schizophrènes ou obsessionnelles de mes journées)

quinta-feira, 19 de março de 2015

Dossier: Imigração portuguesa para o Luxemburgo começou há 50 anos (2/4)

Heroína de Pina, em 2009 Foto: Manuel Dias/Contacto
Heroina de Pina: “A primeira festa do 10 de Junho no Luxemburgo foi ideia do meu marido” 

Heroína de Pina, viúva de Carlos de Pina, fundador do CONTACTO, recorda como emigrou para o Luxemburgo e a primeira festa do 10 de Junho que o seu marido organizou, em 1965. Este terá sido o primeiro evento de que há registo organizado pela comunidade portuguesa no Grão-Ducado.

Carlos de Pina Foto: Arquivos Família Pina
“Em Portugal, o meu marido fazia parte da Acção Católica. Conhecia o padre Plácido Guerné, que vinha frequentemente celebrar missas a Estrasburgo, em França, mas também à Alemanha e ao Luxemburgo. De vez em quando, o meu marido vinha com ele. Numa das viagens ficou a conhecer o Luxemburgo e gostou tanto do país que alguns meses depois já cá estava. Isso foi em Maio de 1964 e eu vim seis meses depois, em Dezembro, com as minhas duas filhas – as duas mais novas já nasceram no Luxemburgo. Eu tinha 28 anos e o meu marido 37”.

Heroína conta que quando o seu marido chegou ao Luxemburgo “não pôde trabalhar na sua profissão”, porque não dominava o luxemburguês nem o alemão. Encontrou assim um primeiro emprego como electricista na empresa de construção Soclair.

“O pai dele tinha uma empresa de instalações eléctricas em Cascais, ele gostava e percebia de electricidade. Mas como não estava habituado àqueles trabalhos, pouco depois de começar a trabalhar, caiu numa obra, partiu um braço e nunca mais ficou bom do punho, o que o impossibilitou de continuar nessa profissão. Foi trabalhar como fiel de armazém para os ‘Grands Magasins Sternberg Frères,’ que ficavam na rue du Curé [na capital]”, conta Heroína.

O primeiro evento organizado pela comunidade portuguesa em terras do Luxemburgo

“Assim que aqui chegou, o meu marido começou logo a organizar coisas para os portugueses. Quando chegámos, só havia um cônsul honorário [Jean Turk, 1919-2013, nomeado consul honorário em 1959]. Depois, já em 1965, veio o cônsul Mendes-Costa, mas ainda não havia Consulado [seria inaugurado em Março de 1966]. Quando queria organizar alguma coisa, o meu marido dirigia-se às autoridades luxemburguesas”, lembra. Foi assim, com a ajuda de Marcel Barnich, do Serviço Social da Mão de Obra Estrangeira (mais tarde rebaptizado Serviço Social da Imigração), que conseguiu organizar a primeira festa do Dia de Camões, em 1965.

Marcel Branich Foto: Arquivo LW
“O meu marido teve a ideia de celebrar uma missa na catedral e depois fazer um almoço-convívio“, conta Heroína. Na fotografia da época (ver artigo aqui), que faz parte dos arquivos da família Pina, podem reconhecer-se Marcel Barnich e o cônsul José Mendes-Costa, em primeiro plano, junto a um grande grupo de pessoas, no adro da catedral.

“O meu marido não está na foto, porque foi ele que a tirou. O cônsul tinha vindo há pouco tempo da Bélgica e só participou na festa”. Heroína mostra-nos o convite que Carlos de Pina enviou para Mendes-Costa a 5 de Maio de 1965, e a resposta deste, dois dias depois, que assina “A bem da Nação, o vice-cônsul gerente, José Mendes-Costa”.

“Quem teve a ideia da festa foi o meu marido, que pediu a ajuda do senhor Barnich para a organizar. O cônsul só apareceu lá para fazer um discurso”, assegura Heroína, que estima terem participado na missa cerca de 200 portugueses [outras fontes referem 500 participantes].

Heroína não se lembra do padre que celebrou a missa, mas segundo um artigo publicado no Luxemburger Wort, em 19 de Junho de 1965 (“Erste ’Journée Portugaise’ in Luxembourg”, pág. 8), foi o padre espanhol Javier, da Missão Católica Espanhola, a celebrar essa missa para os portugueses.

Luxemburger Wort, 19/06/1965 (pág. 8)
As fotos do LW e dos arquivos da família Pina, o relato na primeira pessoa de uma das pessoas ligadas à organização desse primeiro Dia de Portugal em terras grã-ducais, permitem-nos estabelecer este evento como o primeiro organizado pela comunidade portuguesa no Grão-Ducado, que então emergia.

No artigo do Wort, pode ainda ler-se que a missa decorreu na cripta da Catedral Notre-Dame e que depois se seguiu um almoço na sala grande do restaurante Carrefour (que se situava no boulevard Royal), na capital luxemburguesa. “Foram mostrados filmes a cor de Portugal que despertaram no coração dos portugueses saudades da sua terra”, escreve o repórter do jornal luxemburguês. O artigo explica que a festa foi organizada por Marcel Barnich, responsável do Serviço Social da Imigração, mas não faz referência a Carlos de Pina.

Segundo o jornal, Barnich esperava pouco mais de uma centena de participantes e ficou surpreendido por terem aparecido mais de 500. No artigo pode ainda ler-se que nessa altura viviam no Luxemburgo cerca de um milhar de portugueses, sem citar fontes. Na realidade, já viviam quase dois mil portugueses no país (ver quadro).

Numa das duas fotos do artigo, a legenda diz que a festa contou com “cantores e músicos de pele escura das ilhas de Cabo Verde”. A descrição do jornalista, politicamente incorrecta para os nossos dias, deve ser vista à luz dos anos 1960, em que era pouco habitual, para não dizer “exótico”, ver estrangeiros no Luxemburgo, e muito menos de origem africana. Mas isto também revela que assim que houve portugueses no Luxemburgo, houve também cabo-verdianos, na altura com nacionalidade portuguesa (ver artigo na pág. XI).

O repórter do Wort não escreve se foram cantadas mornas, mas diz que se cantou o fado e que duas artistas luxemburguesas participaram na festa. “A jovem bailarina Marie-Claire Winandy, aluna da senhora Stenia Zapalowska [dançarina polaca que vivia no Luxemburgo], e a cantora Maggy Groff, que cantou canções luxemburguesas, provocaram um entusiasmo barulhento, típico do sul” (dixit). Houve assobios efusivos e piropos?

Marcel Barnich fez um pequeno discurso em português, agradeceu aos portugueses por terem vindo em tão grande número, falou na “necessidade do Luxemburgo contar com a emigração, e numa Europa que devia trabalhar por ser cada vez mais unida”, pode ainda ler-se. Pediu ainda aos portugueses para, caso tivessem dificuldades no país, recorrerem aos seus serviços.

O artigo evoca também o discurso de Mendes-Costa, que terá dado como recado aos portugueses “não trabalharem apenas com objectivos materiais, aprenderem os métodos de trabalho do Luxemburgo, especializarem-se nos mais diversos ramos”, para quando regressassem a Portugal “poderem ajudar a construir o país”. O artigo termina referindo que a festa acabou com o hino nacional português.

Em 1966

Luxemburger Wort, 17/06/1966 (pág.11)
Heroína conta-nos ainda que Carlos de Pina também fez parte da segunda festa do 10 de Junho, em 1966, numa comissão de festas já organizada pelo cônsul Mendes-Costa, de que faziam ainda parte a “senhora Rodrigues, os senhores Ferreira, Ventura e Fortunato”, pode ler-se também no Wort, em Junho de 1966. Dessa vez, a missa foi na Igreja Notre-Dame de la Paix, em Bonnevoie, e foi celebrada pelo abade Jos. Molitor. Depois, seguiu-se um almoço no Casino Sindical de Bonnevoie. “Lembro-me que nessa festa estava lá um jovem com um acordeão que se chamava Félix. Eu disse umas poesias, houve música, e comes e bebes”, conta Heroína.

Sobre a sua experiência da imigração, Heroína lembra-se dos primeiros tempos. “Quando chegámos, fomos morar para Niederanven. Lembro-me que quando cheguei ao Luxemburgo havia grandes montes brancos de neve nas bermas das estradas. Eu nunca tinha visto neve. Na noite em que fomos à Missa do Galo, na igreja de Niederanven, tínhamos que andar cerca de um quilómetro a pé, e eu chorei muito porque era o meu primeiro Natal longe da família. Mas quando saímos da igreja, estava tudo branco. Tinha nevado enquanto estávamos na missa. Era lindo. Na manhã seguinte, quando abri as persianas, estava um lindo dia de sol e fiquei maravilhada com a paisagem. É uma das minhas primeiras recordações do Luxemburgo.”

Heroína diz que as filhas não tiveram problemas de integração, nesses primórdios da imigração portuguesa. “Ao princípio, eram vistas como as estrangeiras, eram as únicas portuguesas. Mas quando chegaram à escola, aos seis anos – na altura não havia ensino precoce nem pré-primário –,elas já sabiam fazer contas e escrever português. Depois aprenderam depressa o luxemburguês e as outras línguas, sempre foram boas alunas. Hoje, duas trabalham na Comissão Europeia, uma na Ajuda Humanitária e a outra nas Estatísticas. As outras duas, uma é educadora para crianças deficientes e a outra jurista no Conselho de Estado. E já tenho quatro netos, um com 23, outro com 20, e dois gémeos com dez”, diz Heroína, com orgulho.

Heroína de Pina foi uma das fundadoras da associação Amizade Portugal-Luxemburgo (APL). Durante as décadas de 1970, 1980 e 1990 colaborou em várias outras associações e ranchos, escreveu dezenas de poemas e canções, nomeadamente para revistas à portuguesa, que redigia, montava e ensaiava, e que andaram em digressão pelo Luxemburgo. Nos últimos anos, colaborou com o Rancho Juventude Portuguesa de Dudelange.

Em 2009, foi agraciada com a Medalha da Ordem do Mérito do Estado português. Hoje tem 78 anos e reside em Mersch.

José Luís Correia 
in CONTACTO, 11/03/2015 

Resposta do cônsul Mendes-Costa ao convite de Carlos de Pina para participar na primeira festa do 10 de Junho no Luxemburgo (1965) Fonte: Arquivos Família Pina

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