...e com uma centena de cantores, dançarinos e músicos, que fazem parte da Ópera Nacional Búlgara de Ruse e que vieram actuar no Kinneksbond, em Mamer.
"Carmen" tinha desta segunda vez que a vi (a primeira foi na televisão, há alguns anos) a encenação da belga Dominique Serron, 136 anos depois da sua estreia, em 1875, na Ópera Cómica de Paris, e contou com adaptações cénicas contemporâneas que se enquadraram bem.
A cigana Carmen e o brigadeiro D. José aparecem fiéis a si mesmos, com vestes e modos da Sevilha do séc. XIX, mas Micaela (ex-namorada de José) e o toureiro Don Escamillo aparecem com roupas contemporâneas, fato cinza e óculos escuros para ele, saia travada e tailleur para ela. Como se fossem personagens extemporâneas, nos dois sentidos da palavras, fora do tempo e inoportunos.
Um dos momentos altos da ópera é, claro, a canção "L'Amour est enfant de Bohème" que a sulfurosa Carmen canta na taberna. Entra o toureiro Don Escamillo, que protagoniza outro momento alto com a canção "Toreador".
Segue-se a sedução de José, que se deixa levar pela endiabrada e irresistível cigana. "Si je t'aime, prends garde à toi...", avisou ela. José deserta do exército e segue o grupo de ciganos, para poder estar com a sua amada, como ela exigiu.
No terceiro acto, Carmen cansou-se do amor de José. Entretanto, quando cantou na taberna, a bela chamou a atenção de El Toreador.
Nas montanhas onde estão acampados, Carmen e duas ciganas lêem o futuro nas cartas. As amigas vêm amores, casamentos, jóias e glórias. Carmen apenas morte e mais morte... Lá fora, José monta a guarda e dispara sobre um intruso, mas não lhe acerta. É Don Escamillo que lhe confessa vir à procura de Carmen, por quem se apaixonou.
"Bem sei que ela estava há pouco tempo com um brigadeiro, mas os amores de Carmen não duram seis meses...", lança o toureiro. José sente-se insultado e os dois homens lutam. Escamillo leva a melhor sobre José, mas assegura-lhe: "Mato toiros, não homens". Mas o toureiro escorrega e quando José se prepara para lhe desferir o golpe fatal, Carmen trava-o no seu gesto.
Escamillo convida a cigana para vir assistir a uma das suas touradas. José, desfeito, avisa: "Carmen, cuidado contigo, porque estou farto de sofrer...". Entra Micaela que vem dizer a José que a sua mãe está muito doente e leva-o consigo. José não quer deixar Carmen com o novo amante, mas não tem escolha.
O último acto acontece junto à praça de touros de Sevilha. Escamillo e Carmen cantam apaixonadamente um dueto de amor e a multidão aplaude fascinada. Duas ciganas vêm avisar Carmen que tenha cuidado, José foi visto a rondar por aí. Enquanto Escamillo entra na arena, Carmen é interceptada por José. Este pede-lhe uma nova oportunidade, Carmen recusa, José ameaça-a e esta retorque: "Não cederei. Bem sei que me vais matar, mas nasci livre, morrerei livre...". E num gesto de desdém lança-lhe o anel que este lhe ofereceu. Louco, José esfaqueia Carmen, no mesmo momento que dentro da arena o público sauda ruidosamente mais um triunfo de Escamillo. Carmen morre nos braços de José. Cai o pano.
Refira-se as belas vozes e excelentes interpretações da mezzosoprano americana Carla Dirlikov (Carmen), do tenor italiano Francesco Medda (José), da soprano búlgara Mariana Panova (Micaela) e do baixo italiano Sergio Foresti (Escamillo).
Num cantor de ópera interessa não só a potência vocal, como o talento de interpretar bem como a forma de "dizer" as suas falas, o que nem sempre é evidente para um espectador de ópera leigo como eu. Mas sobretudo Dirlikov e Medda eram exímios em todos estes aspectos, o que ajudou a contar a história e a intensificar as passagens dramáticas.
Gostei dos elementos contemporâneos: ver turistas, com guias debaixo do braço, a disparar flashes à queima roupa às sevilhanas, transportou-me até uma viagem que fiz à capital andaluza nos anos 90. Aquilo é mesmo assim, há ali um décalage entre um certo autismo e obsessão por fazer fotos por parte dos turistas, mais preocupados em guardar momentos do que em vivê-los, que a encenadora soube bem reproduzir.
As cenas de multidão e de grupo, em que todos os actores cantam, foram sobretudo bem dirigidos e resultaram de forma excepcional.
Gostei também da personagem do guia (David Macalusa), que aqui tem também o papel de narrador esporádico porque assim sempre (romanticamente) me imaginei: contador de histórias para o povo pelos pueblos por onde passaria por esse Mundo fora, vestido como um Davy Crockett explorador, recolhendo mais histórias e experiências, para vivê-las e depois deitá-las no papel.
O mito do "Walden" de Thoreau - do homem que deixa a civilização para melhor se encontrar - ecoou em mim desde cedo, muito antes de o ter estudado na universidade. Talvez porque fui sobreprotegido, talvez porque as cartas ditaram a minha morte prematura mais do que uma vez, talvez porque tive duas mães superprotectoras, talvez para escapar a essa redoma de vidro que foi a minha infância, já pequeno escapava para o sótão e imaginava que este era uma floresta virgem e eu um explorador. De mochila à tira-colo, lápis no cinto a fingir facas, a chapka russa do meu pai a fazer de conta que era um chapéu em pele de castor, eu redescobria os cantos escuros da mansarda. E, para espantar os meus medos e os vultos fantasmagóricos das sombras que assomavam, entoava a canção "Maybe" (de Thom Pace), genérico da série "The Life and Times of Grizzly Adams", que diz exactamente isso que eu sentia:
"Deep inside the forest, is a door into another land (...), Maybe there's a world where we don't have to run (...) Take me home...". Mas esse lar não era a casa materna, era tudo o resto, a vida selvagem, a natureza, o mundo, e mais tarde ainda o espaço sideral e o universo...
Aquela personagem de "Carmen" fez-me viajar até à minha infância e a Grizzly Adams. A ópera de Bizet nada tem a ver com uma série hippie dos anos 70... a não ser talvez a exploração do tema da vontade extrema, epidérmica quase, da liberdade, de uma liberdade sem barreiras, sem fronteiras, do maravilhamento de descobrir novos horizontes, novas terras, povos, costumes e pessoas, ao mesmo tempo que alargamos os nossos próprios limites internos.
Gostei. Gostei e cantei. Gostei e viajei.
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