sebenta de anotações esparsas, pensamentos ociosos, reflexões cadentes, poemas difusos, introspecções de uma filosofia mais ou menos opaca dos meus dias (ou + reminiscências melómanas, translúcidas, intra e extra-sensoriais, erógenas, esquizofrénicas ou obsessivas dos meus dias)
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cahier de notes éparses, pensées oisives, réflexions filantes, poèmes diffus, introspections d'une philosophie plus ou moins opaque de mes journées (ou + de réminiscences mélomanes, translucides, intra-sensorielles et extra-sensorielles, érogènes, schizophrènes ou obsessionnelles de mes journées)

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Quando a ficção científica também é filosofia

Duas obras marcaram-me neste últimos dias: "Replay" e "The Man from Earth".

A primeira obra é um livro de Ken Grimwood (1987) e aborda a reincarnação de uma forma nova e original. Em vez de a alma "saltar" de corpo em corpo, ao longo das gerações e das eras, o personagem principal de Grimwood, Jeff Winston, um rádio-jornalista de 43 anos, morre em 1988 e volta a acordar em 1963 no seu próprio corpo, de 18 anos. Vinte e cinco anos depois, game over e replay. Over and over again...

Se a reincarnação serve para que a alma melhore e se aperfeiçoe em cada "descida" à Terra, acreditam os budistas, a personagem de Grimwood vai servir-se dos seus primeiros replays para não casar com a mesma miúda, fazer vida de hippie e sexo desregrado nos anos 60, sair da Universidade sem diploma, apostar nas corridas de cavalos das quais já conhece os resultados e com isso fazer fortuna, jogar na bolsa apostando providencialmente em pequenas empresas dos anos 70 como a Apple, arrecadar milhões e construir um império na boa tradição americana do self made man.

Ao longo dos replays, Jeff repara que apesar de ter escolhido de cada vez vias diferentes para chegar a 1988, isso não lhe traz a felicidade e a serenidade a que almeja.

O final é inesperado, até para mim que estou habituado a devorar tudo o que são livros, filmes e histórias sobre universos paralelos, realidades alternativas e viagens no tempo.

Atenção, spoiler: Depois de muitos replays, Jeff nota que acorda cada vez mais tarde ao regressar ao passado: em 1963, depois em 1965, depois nos anos 70 e no final, apenas a alguns momentos de voltar a morrer. A evidência impõe-se: chegará um momento em que deixará de haver replays e morrerá "de vez". No momento em que espera esse derradeiro replay... o tal ataque de coração, que já o fulminara centenas de vezes antes, simplesmente não acontece. E a vida continua, como se nada fosse...

Mas é só com toda a experiência das suas mil vidas diferentes que o jornalista vai perceber o que deve fazer para procurar a felicidade. E que nunca é tarde demais.

A Warner Bros comprou os direitos da obra de Grimwood, mas nunca chegou a realizar o filme. Sobretudo depois de em 1993 a comédia "Groundhog Day", com Bill Murray e Andie MacDowell, ter estreado. O autor tentou processar os produtores de "Groundhog Day", mas em vão. Grimwood morreu em 2003 de... um ataque de coração. Os fãs continuam à espera de um filme. Diz-se que Ben Affleck estaria a tratar da produção.



A segunda história chama-se "The man from Earth" e é um filme realizado por Jerome Bixby.

1998. Um professor de história, John Oldman prepara-se para mudar-se para outra cidade. Os amigos, quase todos também professores na Universidade, não entendem bem porquê, até porque o brilhante professor, apesar de ainda nos seus 30 e tais, chegou recentemente a chefe do seu departamento na faculdade.

John hesita, mas acaba por explicar aos amigos a razão da sua partida. E o que começa como uma brincadeira vai depressa tornar-se um momento alucinante para os que o pensavam conhecer.

John começa por contar que teve a oportunidade de viajar com Cristóvão Colombo, mas nessa época ele ainda acreditava que a Terra era plana e temia mesmo cair de uma das suas bordas.

Os amigos brincam com ele e riem-se da partida que este está a querer pregar-lhes. John confia que pensa ter mais de 11 mil anos - perdeu as contas, diz. Lembra-se de ter nascido ainda na Idade da Pedra, a sua "primeira vida" viveu-a com uma tribo das cavernas. E enquanto os outros iam envelhecendo e falecendo à sua volta, ele nunca morria.

A tribo começou por escolhê-lo como feiticeiro e chamane, mas temendo o que não compreendiam, expulsaram-no do grupo. Foi nómada, viajou a pé pelas florestas da Europa, trocou dezenas de vezes de tribo, seguindo em direcção aos territórios mais ricos em caça. John diz lembrar-se que o tempo aqueceu há cerca de 8 mil anos, viu as águas separar a França da costa britânica. Participou na construção das primeiras cidades, durante dois mil anos foi sumério, cidadão em Ur, conheceu o rei sumério Hamurabi pessoalmente. Viajou para o leste e foi discípulo de Buda, foi etrusco, assistiu à ascensão e à queda do império romano, foi amigo de Van Gogh...

O sorriso divertido dos amigos vai desaparecendo à medida que estes - eminentes professores de Biologia, Arqueologia, Psicologia, Antropologia - lhe fazem perguntas e as respostas parecem verosímeis.

Mas a revelação mais perturbante de todas está ainda para vir, quando John aproxima os ensinamentos de Buda dos que Jesus Cristo tentou transmitir.

Dois dos seus amigos ficam irritados com ele, os outros sentem-se perdidos, num misto de fascinação, curiosidade e incredulidade.

Preocupados com ele, três dos seus amigos já não o querem deixar partir, acham que ele precisa de ajuda psiquiátrica.

E é aí, que John diz que foi tudo uma brincadeira. A não ser que seja apenas para se ver livre dos seus amigos...


Gostei desta história porque explora a viagem no tempo, mesmo se neste caso é a eternidade que está em questão; a vivência de vidas diferentes, sem recorrer a reincarnação. Mas também aqui, as mil vidas de John Oldman (trocadilho) serviram para este ir aprendendo com a Humanidade. E por isso apreciei como, durante o decorrer da história, a serenidade de John nunca descai, como se fora realmente dotado de uma sabedoria não só antiga como sem idade. Ou como eu gosto de imaginar que fosse.

Outros dos aspectos desta história que apreceei é o facto de John dizer que os factos históricos que ficaram para a posteridade nos livros, nos manuais oficiais, nem sempre aconteceram como nos são elatados e como os estudamos. Ou foram deturpados voluntariamente ou o tempo foi limando, escolhendo, pormenores que não o são e que nunca o foram.

Um filme que pede um livro

O meu primeiro reflexo foi pensar: "isto dava uma peça de teatro hilariante". Depois procurei o livro e descobri que além de ser um recôndito filme que só saiu em DVD, o argumento não existe em versão impressa.

A obra estreou directamente em filme em 2007, mas passou completamente despercebida. Primeiro porque nem sequer saiu nas salas de cinema, saiu directamente em DVD. E só chegou à Europa este ano.

As grandes produtoras habituadas aos blockbusters não acreditaram no filme talvez pelo seu lado despojado em termos de cenários, porque não tem absolutamente nenhuma cena de acção, porque conta apenas com oito personagens, que se envolvem num diálogo surrealista. Demasiado surrealista para o grande público?

É, no entanto, esta história merece ser contada.

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