sebenta de anotações esparsas, pensamentos ociosos, reflexões cadentes, poemas difusos, introspecções de uma filosofia mais ou menos opaca dos meus dias (ou + reminiscências melómanas, translúcidas, intra e extra-sensoriais, erógenas, esquizofrénicas ou obsessivas dos meus dias)
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cahier de notes éparses, pensées oisives, réflexions filantes, poèmes diffus, introspections d'une philosophie plus ou moins opaque de mes journées (ou + de réminiscences mélomanes, translucides, intra-sensorielles et extra-sensorielles, érogènes, schizophrènes ou obsessionnelles de mes journées)

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Visita guiada ao Museu Nacional de História Militar, em Diekirch + Influências portuguesas no Luxemburgo durante a Segunda Guerra Mundial

"Não glorificamos a guerra, cultivamos o dever de memória"

Visitei um dos espaços museológicos ainda desconhecidos por muitos no Luxemburgo: o Museu Nacional de História Militar, em Diekirch.

O lugar é já muito frequentado por luxemburgueses mas igualmente por estrangeiros (cerca de 30 mil visitantes anuais). Estes últimos fogem, no entanto, às características habituais do turista que o país costuma acolher. Vindos sobretudo da Bélgica, Holanda, Alemanha, e um terço de mais longe ainda, dos Estados Unidos, são soldados veteranos, muitos já octogenários, que num périplo peregrino até ao Grão-Ducado com filhos, netos e até bisnetos, encetam um regresso ao passado comovente e por vezes doloroso. Voltam com o desejo de pisar o solo do país que libertaram entre 1944 e 1945 do jugo nazi, querem ver se reconhecem sítios e lugares, se se cruzam com rostos familiares, ao mesmo tempo que recordam onde caíram irmãos de armas.

Fundado em 1982 por um grupo de amadores, o Museu Militar de Diekirch especializou-se na memória da Batalha das Ardenas (de 16 de Dezembro de 1944 a 25 de Janeiro de 1945), dos aliados libertadores e dos luxemburgueses que a seu lado combateram. E por extensão, com o passar dos anos, a instituição passou a ser a referência em termos de história militar nacional, ou não fosse a cidade ainda hoje dotada de uma guarnição e de uma escola militar no Herrenberg vizinho. A visita a este museu faz aliás parte da formação de base dos recrutas.

Roland Gaul, curador e fundador do museu, começa por esclarecer: "Nas visitas guiadas, sobretudo quando se trata de turmas de jovens, a primeira mensagem que lhes é transmitida é que este não é um lugar para glorificar a guerra, mas para cultivar o dever de memória. Recordamos e contamos às novas gerações o que aconteceu para que a História não se repita". Na visita guiada, somos conduzidos por Roland Gaul e por Daniel Jordão, um jovem luso-descendente, membro e colaborador científico benévolo da instituição (ver artigo infra).

A guerra em tamanho real

Ao entrarmos, algo que logo nos interpela são os "dioramas" – quadros fidedignos de momentos quotidianos da Batalha das Ardenas, com manequins vestidos a rigor, material, máquinas, veículos e armas da época em tamanho real.

Um dos quadros onde os visitantes mais se detêm é o que recria o Dia de Acção de Graças festejado pelas tropas norte-americanas no Luxemburgo no Inverno de 1944 e em que se pode ver um peru recheado a ser assado num fogão improvisado e os soldados a confraternizarem com a população local.

Mais à frente, o maior diorama do museu reconstitui a difícil travessia do rio Sûre para a libertação definitiva de Diekirch, em Janeiro de 1945, operação conduzida num dos Invernos mais rigorosos de que há memória, com temperaturas que chegaram aos 23 graus negativos. Uma recriação apenas possível graças ao generoso donativo, em 1987, de 200 mil dólares por parte de um milionário americano, Harry Gray, ele próprio mobilizado nas Ardenas em 1945 [n.d.R.: Gray foi um dos administradores da "United Technologies Corporation", conglomerado que constrói elevadores (OTIS) mas também helicópteros e motores de avião (para a Boeing e para o exército americano, por exemplo)].

"Os quadros foram conseguidos através de um minucioso trabalho de reconstituição a partir de fotos, documentos e entrevistas com particulares e soldados veteranos", explica-nos Roland Gaul. O responsável faz questão de frisar que estas são sempre "representações ponderadas", ou seja, quer se trate de representar soldados alemães, aliados ou a população civil, "a preocupação é sempre de o fazer com a máxima objectividade possível".

Numa das salas foi recriado um campo de prisioneiros soviético onde as tropas vermelhas haviam detido luxemburgueses que envergavam uniformes nazis, mas que haviam sido alistados à força. "Infelizmente os luxemburgueses eram incapazes de se fazer entender pelos soldados russos e ficaram presos até ao fim da guerra", conta.

"Os visitantes gostam sobretudo de ficar a conhecer as histórias humanas, de saber o que pensava o soldado anónimo, como vivia o dia-a-dia na frente de combate, o que comia, como fazia para sobreviver perante as condições rudes e os ataques inimigos. Interessam-se curiosamente também pelo conteúdo das rações. Por exemplo, gostam de ver exemplares das chicletes, das barras de chocolate e das garrafas de Coca-Cola que faziam parte de algumas das rações dos soldados americanos, produtos que estes partilhavam com os autóctones, que não conheciam ainda alguns desses alimentos", revela.

Reduto da História Militar Nacional

O museu reparte-se sobre quatro andares, num total de 3.200 m2, e tem 28 mil artigos catalogados, distribuídos por diversas exposições temáticas. Patente está, por exemplo, uma colecção de todos os uniformes usados até hoje pelas tropas grã-ducais, desde a Primeira Guerra Mundial até às recentes missões humanitárias e de paz. "O próprio grão-duque Jean, o antigo soberano, doou já uniformes seus ao museu", frisa orgulhoso Roland Gaul. Muito do vasto espólio militar exposto foi aliás doado pelo Exército luxemburguês.

O numeroso material bélico distribui-se não só pelas exposições temáticas mas igualmente num dos primeiros hangares em que o visitante penetra e que mais parece de um armazém militar, o que, desde logo, impressiona. São peças de artilharia ligeira e pesada usadas na Segunda Guerra Mundial, blindados alemães, tanques, jeeps americanos, pára-quedas, um exemplar da máquina "Enigma" (utilizada pelos Alemães para enviar mensagens codificadas durante a guerra), material médico e de transmissão, velhas metralhadoras, bazucas, espingardas, revólveres, munições, obuses, granadas, entre outros.

Estes dois últimos items são aliás dos mais doados pela população civil (depois de o Exército intervir para proceder à sua desactivação, como foi o caso nos últimos dias com bombas da Segunda Guerra Mundial encontradas na estrada CR342, em Hosingen, e no campo de futebol Op Flohr, em Grevenmacher), que ainda hoje, mais de 60 anos depois do fim da guerra, os vão encontrando semi-soterrados em caminhos florestais ou de cada vez que alguém escava fundações para construir uma casa. Segundo o curador, há quase todas as semanas doações de bens familiares da época da guerra, como capacetes, botas militares, fotos, correspondência, etc.

O museu dispõe de 15 mil documentos, entre livros e fotos, que estarão brevemente disponíveis ao público na futura biblioteca e no centro de documentação, as duas novas secções em preparação.

Dado o excesso de material que lhes é trazido, é de bom grado que o responsável direcciona os doadores para os outros três museus que tratam igualmente da Segunda Guerra Mundial, cada um com a sua especificidade: o Museu da Resistência, em Esch/Alzette, o da Deportação, em Hollerich, e Museu o da Segunda Guerra Mundial, propriamente dita, em Ettelbruck.

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Segundo Daniel Jordão, colaborador do Museu Militar
"Estamos a repensar o museu"

Daniel Jordão é um dos colaboradores do Museu Nacional de História Militar de Diekirch (ver artigo principal) e está, em conjunto com o curador Roland Gaul e a restante equipa de voluntários, a repensar a forma de dispor todo o espólio recorrendo a formas mais modernas, suportes audiovisuais, apresentações mais interactivas. "Há demasiado material exposto, é preciso fazer escolhas criteriosas para as visitas não se tornarem fastidiosas", explica.

Informático de profissão, o jovem luso-descendente de 28 anos interessou-se pela Segunda Guerra Mundial durante uma viagem à Normandia, quando viu nomes luxemburgueses inscritos nas placas comemorativas que celebravam o Dia do Desembarque (Dia D: 6 de Junho de 1944).

"Afinal havia luxemburgueses no Desembarque?". Daniel quis saber mais e percebeu que esse aspecto era um dos menos documentados na história luxemburguesa. Contactou o Museu de Diekirch e disponibilizou-se para dar o seu contributo benévolo. Confia que o que o motiva é tentar entender como jovens, como ele, fizeram na altura para "fazer face à situação e resistir ao invasor". Nos seus tempos livres, à noite ou ao fim-de-semana, lê tudo o que pode sobre o assunto. Para o museu, entrevista veteranos, filma testemunhos, recolhe arquivos privados. Além disso, efectua pesquisas precisamente sobre os antigos combatentes luxemburgueses que lutaram ao lado dos aliados, em uniforme francês ou inglês, que pertenciam à Resistência ou que participaram no Desembarque.

"Conhecer o passado, os horrores da guerra, para saber dar valor à actual paz em que vivemos", conclui Daniel, recordando palavras do pai. Este esteve quase três anos em Moçambique, durante a guerra colonial portuguesa, integrado na Segunda Companhia de Fuzileiros. Palavras que até podem nem ter sido ditas assim a Daniel, mas que já transportavam uma mensagem importante: a do dever de memória.

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Portugal e o Luxemburgo na Segunda Guerra Mundial

Influências portuguesas

A história do Luxemburgo durante a Segunda Guerra Mundial também se cruz a com destinos portugueses, em pelo menos duas ocasiões: a fuga da Grã-Duquesa Charlotte para o exílio, em 1940, e a promessa feita a Nossa Senhora de Fátima, em 1945, por um grupo de moradores de Wiltz.

Bastante conhecidos são os laços de sangue que unem as casas reais luxemburguesa e portuguesa. O grão-duque Henri é bisneto da sexta filha de D. Miguel I de Portugal, Mariana de Bragança, nascida na Áustria (em 1861) após o pai ter sido exilado pelo irmão D. Pedro I (em 1834). Mariana viria a casar com o grão-duque Guillaume IV do Luxemburgo em 1893, do qual teve duas filhas, ambas grã-duquesas: Adelaïde, soberana de 1912 a 1919, e Charlotte, que reinou de 1919 a 1964.

As famílias permanecem aliás bastante próximas. Ainda em Agosto, os duques de Bragança gozaram uma semana de férias com os primos do Grão-Ducado, na casa de férias que a família grã-ducal tem na Côte d'Azur.

A Grã-Duquesa Charlotte e o cônsul Sousa Mendes

Menos conhecido é o facto de a Grã-Duquesa Charlotte, ao escapar do Luxemburgo em 1940 para não ser capturada pelo ocupante alemão, se ter dirigido ao Consulado de Portugal em Bordéus, na esperança de obter um visto para Lisboa, considerada a única porta de saída na Europa em guerra. O visto foi-lhe emitido pelo cônsul português em posto, Aristides de Sousa Mendes.

Com o visto, a grã-duquesa, o príncipe Jean (futuro grão-duque) e alguns membros do Governo luxemburguês conseguiram chegar à capital portuguesa e dali exilar-se em Londres.

Porque escolheu a grã-duquesa o Consulado português? Teria ouvido o rumor de que aquela chancelaria estava a passar vistos de forma indiscriminada, sem olhar a quem, de maneira a salvar o maior número possível de fugitivos do jugo nazi?

Salazar, preocupado em manter a neutralidade portuguesa, havia dado a Sousa Mendes ordens claras: "não passar vistos a apátridas, judeus (...) e estrangeiros com nacionalidade indefinida". O diplomata teria decidido desde 1939 contrariar a ordem. "Se há que desobedecer, prefiro que seja a uma ordem dos homens do que a uma ordem de Deus", dissera. Atitude que lhe valeu a ira de Salazar e a posterior demissão do posto. O "cônsul injustiçado", como ficou conhecido, é hoje considerado pelo Estado de Israel como um dos "Justos", por ter salvo igualmente a vida de muitos judeus que fugiam aos nazis.

Terá Sousa Mendes chegado a saber que estava a salvar uma descendente da coroa portuguesa, ter-lhe-á a grã-duquesa dito que era neta de D. Miguel ou essa conversa nunca aconteceu? Mais... terão o grão-duque Jean e o Governo luxemburguês pensado nessa "dívida" a Portugal quando decidiram em 1970 assinar um contrato com o Governo português que abria as portas do Grão-Ducado à imigração lusa?

A Promessa

A 13 de Janeiro de 1945, numa das derradeiras operações da Ofensiva das Ardenas (ver artigo principal), Wiltz ocupada pelos nazis viu-se cercada no meio dos combates. Dez pessoas refugiam-se na cave do Presbitério e prometem erigir no sítio "op Bässent" um santuário em honra de Nossa Senhora de Fátima, se escaparem ilesos. As tropas alemães retiram-se sete dias mais tarde, derrotadas pelos aliados.

Em 13 Setembro de 1947, a imagem de Nossa Senhora de Fátima, em visita ao Grão-Ducado, passa por Wiltz. Uma primeira missa é celebrada no alto do monte, na presença de sete mil pessoas: luxemburgueses, franceses e belgas. Nesse dia é colocada a primeira pedra do futuro santuário. Segundo noticiava o Luxemburger Wort da altura, o bispo do Luxemburgo, Joseph Philippe, teria agradecido a vinda da santa ao país, como se fosse o retribuir da visita que a Grã-Duquesa Charlotte fizera a Portugal em 1940, na sua fuga a caminho de Londres. O santuário viria a ser terminado em 1952 e consagrado a 13 de Julho desse ano pelo bispo Léon Lommel.

Mas é só nos anos 60, quando os primeiros imigrantes portugueses chegam ao país, que descobrem a existência do santuário. A primeira peregrinação acontece em 1968. Quatro anos depois, o arcebispo Jean Hengen oferece à paróquia de Niederwiltz uma imagem de Nossa Senhora, o que veio reforçar a devoção dos peregrinos. Desde daí, anualmente, no Dia da Ascensão, Wiltz enche-se de milhares de portugueses vindos dos quatros cantos do Luxemburgo e dos países vizinhos.

José Luís Correia, in Contacto, 03.09.08

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