sebenta de anotações esparsas, pensamentos ociosos, reflexões cadentes, poemas difusos, introspecções de uma filosofia mais ou menos opaca dos meus dias (ou + reminiscências melómanas, translúcidas, intra e extra-sensoriais, erógenas, esquizofrénicas ou obsessivas dos meus dias)
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cahier de notes éparses, pensées oisives, réflexions filantes, poèmes diffus, introspections d'une philosophie plus ou moins opaque de mes journées (ou + de réminiscences mélomanes, translucides, intra-sensorielles et extra-sensorielles, érogènes, schizophrènes ou obsessionnelles de mes journées)

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

crónica de férias de um vadio literário

As férias resumiram-se a alguns dias de Praia, no Algarve, dois dias em Oliveira do Bairro, para ser o padrinho no casamento do meu irmão e meio-dia no Porto, antes do regresso ao exílio. Poucos dias, mas que serviram para a retemperança.

No Algarve, ainda antes de ir para a praia, ida obrigatória à Fnac da Guia, em Albufeira. Com a promessa, feita a mim mesmo e à minha cara metade, de não ceder aos "baixos instintos" e de comprar poucos livros. Até porque depois são esses excendentes de bagagem que pesam na mala e na carteira.


Palavra de ordem: conter-me!


Assim, desta vez, contive-me (coloquei-me mentalmente em posição zen) e só comprei três livros: "o apocalipse dos trabalhadores", de valter hugo mãe; "Quaresma, Decifrador", de F. Pessoa; e "Nos passos de Magalhães", de Gonçalo Cadilhe.
Só três (3!!!), pensei, bom esforço, e dei-me palmadinhas nas costas. Era mal conhecer-me. Dois dias mais tarde, ao passar pelo Fórum Algarve em Faro não resisti a uns livritos numa pilha ao desbarato a 2,99 euros e foram mais três, pela módica quantia de 8,97 euros: "O meu querido Titanic", de Possidónio Cachapa; "Produções Fictícias - 13 anos de insucessos"; e "A Era do Orpheu" (1986), do Nuno Júdice.

Li este último em 24 horas, dada a minha insaciável e ávida gula em consumir (conhecer) tudo o que diz respeito à geração e à época de Orpheu. Deliciei-me com as lutas de convicções e as batalhas verbais e literárias que opuseram os jovens artistas modernistas da revista lisboeta "Orpheu" como Fernando Pessoa, Santa-Rita Pintor, Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros, entre outros, e os saudosistas da revista A Águia publicada no Porto por escritores e intelectuais um pouco mais velhos e confirmados da geração que eles próprios apelidavam de "Renascença Portuguesa" como Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão, António Correia d'Oliveira, António Carneiro, Leonardo Coimbra, entre outros. Sobretudo, parti o côco a rir com a polémica que o poema surrealista (surrealismo antes da época, note-se!) de Sá-Carneiro em que aparece um "braço de casaca a valsar até ao palácio do vice-Rei" provocou nos leitores da altura, habituados a uma poesia mais "arrumadinha" e "ortodoxa".


Nova Águia

Na mesma senda, descobri (penso que foi na Livraria Bertrand) a revista semestral "Nova Águia" , em referência directa à da Renascença Portuguesa e que começou a ser publicada este ano em Portugal. Também já a devorei, com penas, garras e tudo. Primeiro fiquei preocupado com a temática escolhida - "A Ideia de Pátria: sua actualidade"- que, confesso, pensei de cariz "nacionalista", na acepção "cutânea" da palavra. Mas, percebi depois que os autores convidados não se tinham ficado a assinalar desfraldados "as armas e os barões" nem se detiveram a exaltar como pítias histéricas o destino profético e messiânico do país em transsubstanciar-se em Quinto Império, numa enésima e onânica manifestação luso-portuguesa, mas que procuraram antes lavrar mais além a ideia (ideal) de pátria nas potencialidades de Portugal, da sua língua, culturas e literaturas portuguesas e lusófonas.
Gostei dos textos que li, não se resumem apenas à literatura, estendem-se às ciências, à política e a outras coisas e artes. Mas preferia, por exemplo, ter lido mais poesia e ver mais contribuições gráficas. Talvez num próximo número. Dois novos poetas que retiveram a minha atenção pela "sinceridade crítica" dos seus textos: Luís Filipe Cristóvão e Manuel Silva Ramos. Imperdível também o inédito de Agustina Bessa-Luís, que a revista conseguiu publicar.

Fui dali, nova investida na Bertrand. Cedi também ao "Dicionário Imperfeito" de Bessa-Luís, numa excelente encadernação e apresentação da nova Guimarães Editores. Projectos destes - em que se nota que quem está por detrás é alguém que gosta de livros e de autores e não tem pejo em assumir que cultura pode rimar com a "vergonhosa" palavra que poucos querem ver a ela associada: "rentabilidade" - auguram tempos melhores para o mundo dos livros em Portugal.

Na mesma visita à Bertrand, juntei ao livro azul de Agustina, as biografias dos "Viajantes Solitários", de Fernanda Pratas, e "O Fim dos Tempos", de Jaime Fernandes. As biografias tenho-as lido em ziguezague, seguindo os turistas incidentais que prefiro (Whitman, Rimbaud, Orwell, Nabokov), mas não esperava encontrar Karl Marx, Steve McQueen ou Ayrton Senna na lista. O título indicava viajantes solitários e eu deduzi erroneamente que eram todos escritores... Erro meu!
O segundo livro é de um jovem de 21 anos que se estreia num dos segmentos mais difíceis da literatura: o romance de antecipação (ficção-científica). Quando acabar de ler, digo-vos de minha justiça.

O profeta celta

Na praia, entre um mergulho e um escaldão, acabei de ler, entretanto, "Le huitième prophète: Les aventures extraordinaires d'Amros, le Celte", de Franz-Olivier Giesbert, que tinha começado no avião. Gosto do conto, fluído e interessante, mas nas passagens onde eu esperava que o narrador se detivesse é quando ele salta episódios. O tom e o desafio dados à partida perdem-se um pouco pelo caminho. Preso por soldados gregos, Amros, o Celta vai viajar da sua Gália natal, pela Itália, Grécia, Palestina, Babilónia, Pérsia, e China e terá a oportunidade de visitar os grandes filósofos e guias espirituais da Antiguidade, desde Zaratustra (séc VI. a.C), Pitágoras (569-494 a.C), a Heráclito (séc. VI a.C.), Buda (560-483 a.C.), Confúcio ( 551-479 a.C.) e o profeta Zacarias (séc. VI. a.C.) que eram todos mais ao menos contemporâneos, mesmo se vivendo em regiões diferentes do globo - facto estranho, mas verídico. Esta curiosidade histórica pouco conhecido pela maioria dos leitores é aqui explorada de maneira exímia pelo autor.

Parece que o autor quis fazer mais curto e privilegiou a forma (resumida) ao conteúdo (que deveria ser mais profundo). As aventuras (podiam, mas) também não são assim tão extraordinárias e o leitor não sente o afunilamento da história. Não se sente, por exemplo, reflexão e meditação nos ensinamentos que o protaganista vai adquirindo, tudo parece rápido e episódico, numa sucessão de encadeamentos, com um fim previsível. Enfin, bref! Gostei da ideia, mas penso que foi desperdiçada.

Um dia conto a minha passagem por Oliveira do Bairro e como foi o casamento do meu irmão.

O fim das férias foi no Porto. Na Inbicta, descemos à Baixa, bebemos um café e um frize framboesa no lounge improvisado frente à Câmara Municipal e dali subimos para a rua de Santa Catarina, novo assalto (tímido) à Fnac. No cesto de compras, apenas mais três livros: "Boa Noite, Senhor Soares", do Mário Cláudio (com o expectro do Pessoa a pairar) e que vinha acoplado em promoção com a peça de teatro "Medeia", do mesmo autor; e "Grandes Enigmas da História de Portugal, vol. 1", para juntar à minha colecção maçónica.

No Porto, sê portuense. Assim, o jantar foi francesinha, no famoso Ricardo, em Leça, ventosa nessa noite. Apertados como sardinhas nas mesinhas pequeninas, mas a lamber os dedos todos antes de declinar a sobremesa. Depois, uma voltinha à Ribeira, para esmoer o ovo e as batatas fritas. Chá de hortelã-pimenta para ajudar à digestão na esplanada de um bar marroquino à beira Douro, espojados sem enleio numas almofadas de cetim e tafetá deitadas nas pedras do cais. Uma jovem canadiana, parece-me que se chamava Ashley, veio pedir-nos "fogo, per favore!" e obrigamo-la a pronunciar "i-s-q-u-e-i-r-o", o que podia ter sido traumatizante para uma anglo-saxona, mas a menina achou piada e sentou-se connosco. É de Vancouver e andava com duas amigas numa odisseia europeia. Tinha acabado de chegar do Algarve, como nós, e dentro de dois dias estaria em Barcelona. Queria saber o que se podia fazer no Porto num domingo à noite... A prima da Jess indicou-lhe dois ou três bares e a canadiana foi-se a saltitar de contente.

No regresso ao carro, estanquei diante de uma montra iluminada com livros e que parecia aberta. Eu, que sempre praguejo contra a falta de livrarias abertas à noite, senti-me atraído pela luz como uma libelinha tonta. "Clube Literário do Porto". Do primeiro andar provinha o som de um piano, tocando talvez Berlioz. Penetrámos. Obras de arte, esculturas, pinturas no hall de entrada, livros nas estantes, para consulta e venda. O livro "Canções e Outros Poemas" de António Botto voltou a piscar-me o olho de uma das mesas, andava a assediar-me desde o Algarve e ali, não lhe resisti. "Eu preciso completar a minha colecção dos poetas da época do Orpheu", desculpei-me perante o juiz das minhas próprias vozes.

No final das férias, quando foi o difícil momento de arrumar as malas, não consegui fazer desaparecer os 14 livros entre camisas e calções e tive que me resolver a enviá-los por correio. O que me custou mais 50 euros. Mas... isto para mim é que são férias, é para isto que elas servem: para repousar, refugiar-me do mundo e atestar-me em literatura. Ler, ler, ler... estendido numa toalha na praia, numa espreguiçadeira debaixo do alpendre da minha casa algarvia, numa esplanada de café a bebericar cappuccinos entre páginas, ou em qualquer outro lugar. Alguns amigos nunca conseguiram perceber porque perdia eu os poucos dias que vou de férias a ler! Não perco tempo, ganho, ganho anos de vida, amigos, aventuras, viajo. E eles ficam sempre desconcertados a ponderar na minha insanidade.

"Felizes são os loucos que vivem pouco mas vivem como querem."

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