sebenta de anotações esparsas, pensamentos ociosos, reflexões cadentes, poemas difusos, introspecções de uma filosofia mais ou menos opaca dos meus dias (ou + reminiscências melómanas, translúcidas, intra e extra-sensoriais, erógenas, esquizofrénicas ou obsessivas dos meus dias)
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cahier de notes éparses, pensées oisives, réflexions filantes, poèmes diffus, introspections d'une philosophie plus ou moins opaque de mes journées (ou + de réminiscences mélomanes, translucides, intra-sensorielles et extra-sensorielles, érogènes, schizophrènes ou obsessionnelles de mes journées)

domingo, 3 de fevereiro de 2008

Crónica de antecipação

Dia/Log: 14.30-20.05.2026 Adoro conduzir no campo, acelerar, ver o verde a desfilar cada vez mais rápido, de um lado e de outro, como nos velhos rallyes. Depois paro à bei ra do caminho, dou uns passos na relva, toco o orvalho com os dedos e respiro o ar puro. Ahhh, qu e bom é estar aqui!... Nas cidades já não existe ar puro. Apenas oxigénio reciclado, rarefeito, p obre.

Hoje é a primeira vez que estou verdadeiramente a disfrutar da “franquia verde”, imposto que adquiri o direito de pagar graças ao nível sócio-profissional que atingi ao fim destes anos todos a trabalhar em prol da sociedade que nos canibaliza. Graças a este privilégio, apanágio de uma reduzida minoria, posso conduzir fora das vias tubulares com a minha mais re

cente aquisição: o meu Seat Sintra G6 e o seu velho motor diesel.


As vias tubulares, bah... esses monstros canudóides de vidro e plástico que em poucos anos invadiram e desfiguraram as nossas paisagens verdes e serenas e não me deixam esquecer que vivo na pior década do século XXI, com as suas precaridades agrícolas, a escassez de água doce, a penúria dos combustíveis fósseis, as poluto-pneumonias, as sociedades

ultra-protectiras e controladoras, que vivem em redomas de vidro, temendo tudo.

As antigas auto-estradas foram primeiro isoladas com deflectores de ruído, depois esses muros foram aumentados com paredes poluto-absorventes. Finalmente e como isto não chegasse para travar o sobreaquecimento global, o cratera na camada de ozono e as chuvas químicas, as autoestradas foram hermeticamente fechadas. Nasceram assim, no fim da década passada, as vias tubulares, que é suposto absorverem os gases e fumos dos automóveis, sendo aliás o único sítio onde ainda se pode conduzir veículos poluentes (VPO). Único ponto positivo desta situação: a corrida desenfreada para o desenvolvimento da exploração das chamadas energias brancas renováveis: eólica, solar, térmica, hídrica, magnética e biodegradável. Com tantas energias disponíveis por aí, as sociedades usaram e abusaram dos carburantes fósseis. Estes esgotaram-se quase todos muito antes do prazo previsto, e fomos surpreendidos com esta situação calamitosa a que chegamos. Como diz o grande filósofo do nosso tempo: “O homem sempre foi um animal sem instinto!”.

Claro que nas grandes cidades e mega-metrópoles, os transportes comuns – de consórcios públicos, semi-públicos ou privados –, multiplicaram-se e desenvolveram-se mesmo muito com a proibição de acesso aos VPO. Mas eu destesto os tapetes urbanos, os magnéto-metropolitanos aéreos e o flexieléctricos de carruagens moles. Prefiro optar pelo meu mono-motor (MM) solar do que ir ao rent-a-bike , tirar a velha bicicleta enferrujada da cave ou deslocar-me de trotinete biónica. E para o overboard (skate magnético), já passei da idade!

Pelo menos, o MM negro-resina sempre tem aspecto de automóvel e eu tenho um estatuto a fazer respeitar no meu meio privado e sócio-profissional. O Mono também é prático para passar no shop&drive ou no cash&drive antes de regressar a casa no fim de um dia cansativo de labor. As desvantagens do MM é que se deve quase sempre conduzir em piloto-automático, não ultrapassa os 29km/hora e o motor é mudo. Parece que estou a conduzir um carrinho de choque das feiras para a quarta idade. É frustrante!

Durante muito tempo, não tive o direito de possuir um verdadeiro automóvel. Mas agora, a cada 60 dias, durante 182 minutos, desforro-me. Munido da minha nova licença, venho usufruir da Natureza, aproveitando para conduzir em verdadeiro asfalto, com cheiro a alcatrão e tudo, percorrer os velhos troços das estradas secundárias, há muito interditas ao trânsito, e que se destinam agora a corridas da elite que ainda possui carros a gasolina ou passeios de lazer para veículos a gasóleo com a franquia verde. É um hobby caro, eu sei, mas quero lá saber. Trabalho todas as semanas as minhas 70 horas legais também para poder usufruir de luxos como este.

Volto a subir no meu Seat Sintra G6. Ajusto o assento, girando-o em posição diagonal adaptada à condução desportiva que quero praticar. Hoje, nesta velha E125, quero tentar chegar aos 2km/minuto. É lento para uma velocidade radical, mas é o máximo autorizado na zona e esta velha peça de colecção também não dá para muito mais.

Ordeno a abertura dos vidros e do tejadilho. Solicito ao computador de bordo para poupar na temperatura interior adaptando-a à temperatura ambiente, que active o sonar telemétrico de infra-vermelhos anti-colisão e que ligue o sistema holográfico para que eu possa visualizar o itinerário seleccionado. Peço-lhe também a Nona de Beethoven, volume de som 8, periférico. Antes de arrancar, acciono o tacógrafo obrigatório, ligado à caixa negra do carro e que é passado em revista mensalmente pela CCVE, a Comissão de Controlo de Veículos Extra-urbanos. Da próxima vez, trago o meu 4x4 CRD, CitroRenault Donau, com tacógrafo traficado. Apesar de todos estes constrangimentos, conduzir depressa, fazer rugir este motor potente, levantar poeira e fumo neste meu carrinho é um prazer indiscritível. Sem o meu carrinho, nunca!

(JLC, in Contacto,
08.02.2006)

1 comentário:

Sweet Temptation disse...

Sim senhor, está tão bem escrtio que nos dá a sensação que estamos mesmo mergulhados nesse tempo, como se fosse normal estar a falar de trotinete biónica e de overboard sabendo que isso ainda não existe. Gostei muito. Hávias de escrever assim mais capítulos futuristicos para o "futuro". ;)