sebenta de anotações esparsas, pensamentos ociosos, reflexões cadentes, poemas difusos, introspecções de uma filosofia mais ou menos opaca dos meus dias (ou + reminiscências melómanas, translúcidas, intra e extra-sensoriais, erógenas, esquizofrénicas ou obsessivas dos meus dias)
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cahier de notes éparses, pensées oisives, réflexions filantes, poèmes diffus, introspections d'une philosophie plus ou moins opaque de mes journées (ou + de réminiscences mélomanes, translucides, intra-sensorielles et extra-sensorielles, érogènes, schizophrènes ou obsessionnelles de mes journées)

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Editorial no CONTACTO: "Todos migrantes, todos iguais"

Os portugueses conquistaram Ceuta há exactamente 600 anos. É considerado um feito, tanto que marca o início dos Descobrimentos Portugueses, que deram a Portugal uma era de glória e um lugar na História. Seis séculos depois, no mesmo local, há novas batalhas a serem travadas, novas ameias a serem abalroadas. De novo, a batalha coloca frente a frente europeus e não-europeus, desta vez não são mouros mas subsaarianos, desta vez não somos nós que queremos lá chegar, são eles a quererem chegar até nós.

Seria apenas uma ironia da História, considerando que nos servimos de África e dos africanos durante séculos e agora não os queremos cá deixar entrar, se não fosse mais grave do que isso, uma verdadeira catástrofe humanitária às portas da Europa.

Há várias imagens que me chocaram em 2014. A primeira é uma foto de um ’green’, não sei se em Ceuta ou em Melilla, onde turistas europeus continuam a jogar golfe impassíveis ao sofrimento de um grupo de africanos pendurados numa cerca de arame farpado de sete metros de altura, mesmo ali ao lado, que separa o enclave espanhol de Marrocos.

A sua entrada na Europa foi impedida, mas ficam ali suspensos na ilusão de que enquanto estão lá em cima a polícia não os pode mandar para trás, para uma vida de guerra e de miséria. Podem ficar ali empoleirados horas ou dias, até que caem de cansaço ou de desidratação e a polícia já só tem de os “colher”.

Assaltam a cerca às centenas, na esperança de que nem a polícia espanhola nem marroquina os consiga apanhar todos. Muitos são espezinhados pela confusão, matraqueados ou mesmo abatidos pelos agentes. Os outros, os que conseguem pular a vedação, munidos de pregos nos ténis para se agarrarem melhor à cerca metálica, e fugir num jogo do gato e do rato à polícia, chegam ao centro de acolhimento para imigrantes e sabem que, a partir dali, a Espanha é obrigada a reconhecê-los como imigrantes ilegais.

Em muitos casos, a Espanha tenta repatriá-los, mas como não existem acordos a este nível entre Madrid e a maioria dos países de onde provêm estes clandestinos, alguns acabam por ter uma autorização de estadia em Espanha, ou seja, na Europa.

A outra imagem que me chocou é a de um cruzeiro no Mediterrâneo com três mil turistas a bordo, que passa ao lado de um cargueiro que transporta malianos e costa-marfinenses. Uns viajam em primeira classe, os outros vão trancados no porão. Como há 500 anos. Os primeiros pagaram dois mil euros para se divertir na costa de África, os segundos pagaram seis mil euros para fugir dela. O mare nostrum não é o mesmo para todos.

Talvez a imagem dos dois navios a cruzarem-se apenas exista na minha imaginação, mas com certeza aconteceu na realidade mais do que uma vez. Os primeiros terão fotos e souvenirs das férias, os segundos vão afogar-se às dezenas – homens, mulheres e crianças –, a apenas alguns quilómetros das costas europeias, quando os passadores abandonarem o navio para fugir da polícia marítima grega ou italiana.

Evitar que esta catástrofe humanitária alastre é o desafio crucial da UE. Por exemplo, lutar contra os passadores, na Turquia ou noutros países, que ganham fortunas; condenar os proprietários dos navios, cúmplices deste tráfico; fazer campanhas de sensibilização e de informação nos países de origem dos imigrantes. Mas a UE fecha-se em copas, em fortaleza, e enxota estes imigrantes como moscas e sonha com uma “imigração escolhida”, à canadiana ou à australiana. Mas nem o Canadá nem a Austrália têm um continente inteiro minado pela miséria e pela guerra, muitas vezes alimentadas por interesses europeus, a irromper-lhes porta dentro.

Face a esta imigração não desejada em época de crise económica profunda, assistimos em muitos países ao avanço da extrema-direita. E a um recuo da tolerância.

Como aquilo a que assisti na página Facebook do CONTACTO e que também me chocou, quando um grupo de albaneses e montenegrinos foi expulso do Luxemburgo no final de Novembro. Alguns leitores mostravam-se indignados com o facto de a polícia ter ido buscar uma aluna albanesa dentro do recinto da escola, para a repatriar. Outros pediam mais expulsões e o fecho das fronteiras. Eu vi até portugueses, que justificam estar há décadas no Luxemburgo, para fazer comentários contra os “novos portugueses”, que “ainda agora chegaram” e “já a sabem toda”, e que “deviam era voltar para Portugal”. Há intolerância mais absurda?

Há várias perguntas às quais não consigo responder: o que nos torna a nós portugueses mais legítimos do que outros para podermos estar no Luxemburgo? Não viemos também nós à procura de uma vida melhor, para escapar à guerra e à miséria, primeiro, e à crise, nos últimos anos? O que torna a emigração do meu pai – que fugiu à guerra, deu “o salto” e atravessou ilegalmente a Espanha a pé, também ele escapando aos “carabineros” – mais legítima do que um africano que tenta pular o arame farpado em Ceuta ou Melilla? Não somos todos migrantes?

Espanta-me que o Luxemburgo – cujo Governo integra um primeiro-ministro com origens francesas, russas e polacas, um ministro da Justiça luso-descendente e onde até o primeiro cidadão do país (presidente do Parlamento) é filho de imigrantes italianos, tendo dois terços da população antepassados estrangeiros –, não saiba tratar de forma mais humana esta questão do repatriamento de ilegais.

Se o problema fosse apenas com os recém-chegados. A ferida é mais profunda e se não for sarada, alastrará. Estrangeiro continua a ser, para muita gente, sinónimo de desconfiança, mesmo num país com 46% de não-nacionais. Ninguém imigra porque quer, mas porque é empurrado a isso. Muitos dizem integração mas pensam assimilação e não entendem que na integração os esforços têm de vir de ambos os lados.

Ao criarmos anticorpos na escola e na sociedade contra os estrangeiros, ilegais ou não, é o nosso próprio futuro que estamos a hipotecar.

Em França, os filhos dos aparentemente bem integrados (assimilados!) imigrantes muçulmanos da primeira geração não se identificam com os valores republicanos, sentem-se marginalizados pelo sistema, e muitos optam pela criminalidade ou, pior, pelas fileiras dos terroristas islâmicos. Tivemos recentemente um caso semelhante no Luxemburgo, com um jovem português de Meispelt que aderiu ao Estado Islâmico. O que o fez converter-se ao Islão e depois radicalizar-se? O sistema escolar, uma integração falhada, sentiu-se incompreendido, deixado à margem?

Podem acusar-me de não falar dos exemplos de sucesso na imigração, há muitos, bem sei, e alguns até conheço pessoalmente. Mas não é por sentirmos orgulho desses que não nos devemos preocupar com os que se sentem deixados de parte.

“Migrantes somos todos”, gritavam os mexicanos clandestinos nos EUA contra os brancos que protestavam contra a legalização de cinco milhões de ilegais decidida por Barack Obama. Recordavam-lhes que até os antepassados deles tinham chegado de outros países, e que a América é primeiro dos nativos americanos. Mas até esses atravessaram o estreito de Bering para ali chegar. Quantas gerações é preciso recuar para sermos considerados legítimos numa terra? “A terra não pertence a ninguém”, acreditam os índios americanos. Talvez essa seja parte da resposta. Porque, afinal, nómadas éramos e continuamos a ser. Todos migrantes, todos iguais.

José Luís Correia, in CONTACTO, 07/01/2015

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