sebenta de anotações esparsas, pensamentos ociosos, reflexões cadentes, poemas difusos, introspecções de uma filosofia mais ou menos opaca dos meus dias (ou + reminiscências melómanas, translúcidas, intra e extra-sensoriais, erógenas, esquizofrénicas ou obsessivas dos meus dias)
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cahier de notes éparses, pensées oisives, réflexions filantes, poèmes diffus, introspections d'une philosophie plus ou moins opaque de mes journées (ou + de réminiscences mélomanes, translucides, intra-sensorielles et extra-sensorielles, érogènes, schizophrènes ou obsessionnelles de mes journées)

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Editorial: Uma nova era

O ano de 2014 parece psicológica, económica e politicamente favorável a ser um ponto de recomeço e de renovação.

O mundo financeiro fala na “retoma” e no fim de uma ressaca que dura desde 2008. Os indicadores económicos europeus e americanos parecem realmente querer voltar a arrancar. A última grande depressão, de 1929, durou quanto tempo? Cinco, seis, sete anos? Ou só se diluiu realmente sob o impulso económico da II Guerra Mundial?

A História, feita de golpes e contra-golpes, avanços e solavancos, detesta ’replays’. Muitas vezes são os homens que gostam de pensar que esta se repete e que eles – politólogos, historiadores, adivinhos – conseguem prever o que aí vem. A verdade é que nunca nada acontece duas vezes da mesma forma.

2014 não será como 1914 o fim de uma época e o início de uma nova era. No entanto, é curioso verificar que o século XX terminou da mesma forma como começou o seguinte. No pó. “O Século Sangrento” ou “A Era dos Extremos”, como lhe chamou Hobsbawn, findou no pó que ficou depois de o muro ruir em Berlim, o que permitiu reunificar a Alemanha e à UE crescer para leste.

O século XXI iniciou-se da mesma forma, com muros a ruir, os das torres gémeas de Nova Iorque. Mas enquanto o colapso do muro da vergonha permitiu reunir povos, a queda do World Trade Center tornou visível uma muralha que se tinha erguido num silêncio amordaçado por décadas de hegemonia ocidental e separava o eixo EUA/Europa, centrado num crescimento económico exponencial, e uma parte do mundo árabe, que se radicalizara. Este “segundo mundo” recusava continuar a ser explorado e a ser gerador da riqueza do primeiro. A jihad apregoada pelos fundamentalistas islâmicos não é uma guerra santa, mas económica.

Obama venceu duas eleições com a promessa de que marcaria a diferença com os seus predecessores. Externamente, não o tem conseguido, a retirada das tropas do Iraque e do Afeganistão está por cumprir, o petróleo ainda fala mais alto. Mas os EUA têm feito esforços para não continuar a depender tanto do exterior neste sector. Obama tem apostado, mais do que qualquer administração americana anterior, nas energias renováveis.

A “revolução” pode vir do interior mesmo do sector que tem comandado, mais do que qualquer outro, a política externa norte-americana no último meio-século. Os EUA acabam de autorizar os produtores americanos de brent a voltar a exportar petróleo bruto, algo que não acontecia desde o choque petrolífero de 1973. Esta decisão deve-se à exploração das jazidas de petróleo de xisto no seu próprio território, cujas reservas são estimadas em décadas. Esta autonomia energética, com a qual Washington não vivia há mais de 50 anos, pode levar a uma mudança completa da sua política externa e, consequentemente, de todo o xadrez mundial.

E a Europa, vive um novo alento? A Alemanha, a França, o Luxemburgo e até Portugal falam nos indicadores da retoma económica. Politicamente também, o tabuleiro europeu parece (re)compôr-se e anunciar uma nova era: Juncker, ano 1.

Porque será que David Cameron se mostrou tão hostil ao luxemburguês? Talvez porque sabe que aquilo de que a UE dividida e em crise precisa urgentemente é de alguém que federe e não que separe. Para o Reino Unido – que há mais de 30 anos está com um pé dentro, outro fora da UE e um olho em Washington –, uma Europa aos solavancos não prejudica os interesses insulares, muito pelo contrário.

Juncker é dos poucos políticos (senão o único) ainda em exercício a ter estado na negociação e assinatura do Tratado de Maastricht, que prevê uma UE ainda por acontecer. Talvez seja dos poucos também que neste momento saibam mostrar o caminho à UE, aquele para a qual foi pensada e fundada. A UE precisa de sair de dez anos de status quo barrosista, precisa de um representante forte e carismático. Será Juncker esse homem?

Na política nacional, durante 18 anos, Juncker foi o sucessor providencial de Werner e Santer. Com o seu falar franco, por vezes demasiado coloquial, não hesitou em ir a contra-corrente da opinião pública (os luxemburgueses pretendiam votar contra a Constituição Europeia, Juncker ameaçou demitir-se e os resultados do sufrágio desmentiram as intenções de voto) e mesmo dentro do próprio partido.

Claro que há insucessos na sua política – o preço do imobiliário, o voto dos estrangeiros nas legislativas, o insucesso escolar dos alunos estrangeiros, etc. – mas é preciso recordar que foi ele que esteve na origem das leis que permitiram o voto dos estrangeiros nas comunais, a dupla nacionalidade (durante anos o CSV foi contra ambas, mas finalmente adoptou a posição de Juncker), o aborto, a eutanásia e até a lei anti-tabaco (sendo ele próprio um grande fumador), bem como a do casamento homossexual.

Foi nomeado para primeiro presidente do Eurogrupo em 2005, cargo que exerceu de forma exímia durante oito anos. Foi sob o mandato do “Senhor Euro”, como era apelidado, que foram lançados os planos de salvamento dos bancos e dos Estados, e concebidos os mecanismos de socorro que deverão prevenir futuras fragilidades das economias europeias. Foi ainda um dos únicos a opôr-se de forma aberta e veemente à austeridade na Europa, que Merkel pretendia ainda mais rigorosa.

Não sei se Juncker terá remédio para todos os males da Europa. Pessoalmente, tenho a esperança que Juncker encontre uma solução para a calamidade humanitária que se vive diariamente às portas da UE e que constitui uma vergonha perante o exemplo civilizacional europeu que pretendemos dar: milhares de imigrantes africanos, entre eles muitas crianças, atravessam o Mediterrâneo em busca da Europa prometida. Muitos não chegam cá, as embarcações sobrelotadas viram-se e matam sem olhar a religiões, raças e idades. Os que chegam aos nossos portões, deparam-se com a fortaleza que a Frontex montou e são enxotados como moscas de volta para uma vida de miséria.

Quando Juncker era ministro das Finanças, o Luxemburgo apostou numa solução a longo prazo como uma das soluções à imigração: o investimento e a ajuda ao desenvolvimento no país de origem da imigração. O exemplo com Cabo Verde é expressivo: a cooperação ao desenvolvimento neste arquipélago ajudou a diminuir a imigração cabo-verdiana, em geral, e para o Grão-Ducado, em particular.

Para muitos políticos, Juncker tem um grande defeito: tem sempre uma opinião e não a cala, mesmo quando não é politicamente correcta. Um dia respondeu aos jornalistas: “Nós, os políticos, sabemos bem o que é preciso fazer [para resolver a crise financeira]. O que não sabemos é como ser reeleitos!”.

Sem falsos pudores sobre os seus próprios defeitos e qualidades, directo, sem saber falar “politiquês”, pragmático e prático, é de um homem assim que a UE precisa.

José Luís Correia,
in CONTACTO. 02/07/2014

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