sebenta de anotações esparsas, pensamentos ociosos, reflexões cadentes, poemas difusos, introspecções de uma filosofia mais ou menos opaca dos meus dias (ou + reminiscências melómanas, translúcidas, intra e extra-sensoriais, erógenas, esquizofrénicas ou obsessivas dos meus dias)
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cahier de notes éparses, pensées oisives, réflexions filantes, poèmes diffus, introspections d'une philosophie plus ou moins opaque de mes journées (ou + de réminiscences mélomanes, translucides, intra-sensorielles et extra-sensorielles, érogènes, schizophrènes ou obsessionnelles de mes journées)

quarta-feira, 5 de junho de 2013

(in)Tolerante

Vivemos tempos de tolerância, vivemos tempos de intolerância. Humanidade esquizofrénica. Parece que cada vez que damos um passo no sentido de nos sentirmos cada vez mais como uma só raça, a humana, mais certas franjas desse corpo se arrepiam e se retraem sobre si mesmas.

Vem isto a propósito de vários momentos que me marcaram nos últimos dias e semanas.

Primeiro, o julgamento de um grupo de jovens cabo-verdianos na semana passada, acusados de atacarem e roubarem um passageiro num comboio em 2011, na linha Luxemburgo-Rodange. Ao juiz, a vítima disse que os jovens tinham intenções de o assaltar assim que entraram na carruagem. Os jovens testemunharam que o homem os expulsou da carruagem de primeira classe e que isso desencadeou os insultos e a agressão. Quem provocou quem e porquê? E isso justifica uma tal violência?

 Enquanto isto decorria, a primeira-ministra do Ontario, Kathleen Wynne, assinalava os 60 anos da imigração portuguesa no Canadá, considerando "vital" o reconhecimento dos imigrantes "que adicionaram a sua distinção ao nosso tecido multicultural”. A ministra recomendava ainda que a comunidade portuguesa do Ontário perpetuasse a sua identidade e costumes.

"A nossa província é a soma total das suas diversas comunidades, os canadianos portugueses podem ter um grande orgulho em saber que ajudaram a moldar a nossa identidade colectiva e única”, disse a ministra canadiana.

A palavra-chave aqui é reconhecimento e não identidade.

Estivesse o Canadá ainda ligado à França e talvez o discurso fosse outro. Sem se aperceberam da sua arrogância, os franceses continuam a vangloriar-se de ser uma "excepção cultural" e a elogiar a assimilação cultural dos filhos dos imigrantes, considerando exemplar só esse tipo de integração. Por isso a segunda e terceira geração de portugueses em França é culturalmente invisível.

O país da igualdade e da fraternidade parece cada vez menos igualitário e fraterno. A violência dos protestos da extrema-direita e dos anti-casamento gay na semana passada em Paris, nos Champs-de-Mars (campos de Marte, Deus da Guerra! – por vezes, a História escolhe bem os seus teatros), provocaram-me arrepios. Seja-se a favor ou contra a lei do casamento para todos, isso justifica uma tal violência?

Sopram ventos xenófobos não só contrários aos estrangeiros mas a tudo o que é diferente, os extremismos e as intolerâncias exacerbam-se e muitos grupos e populações retraem-se, bacocos e primários, sobre si ou, pior, degeneram na violência.

Na Suécia, a morte "acidental" há duas semanas de um português pela polícia – que recebeu os agentes com um machado, quando estes bateram à porta de sua casa, onde o imigrante se tinha fechado com a companheira – provocou a fúria dos jovens do bairro, onde moram muitos estrangeiros, que atacaram a polícia e incendiaram carros. Em resposta, grupos de extrema-direita manifestaram-se contra os manifestantes e tiveram confrontos também com a polícia. A vaga de violência provocou um debate no país sobre a integração dos imigrantes, que representam 15 % da população (muito longe dos 46 % do Luxemburgo).

Não é o primeiro incidente deste tipo na habitualmente tranquila Suécia. Distúrbios semelhantes ocorreram em 2010 e 2008 naquele país, após o encerramento de um centro cultural islâmico. A reacção do Reino Unido e dos EUA aos distúrbios na Suécia foi desaconselharem os seus cidadãos a viajar para as zonas de conflito. Como se as ruas de Londres não tivessem sido dois dias antes palco de um degolamento em plena luz do dia de um soldado britânico por dois nigerianos jihadistas.

E que dizer dos EUA, onde menores desatam semana sim, semana não, aos tiros nas escolas, e o terrorismo "doméstico" faz mais de 9 mil mortos por ano, só com armas de fogo? Para fazer baixar estas estatísticas, Obama tentou fazer passar uma lei que obrigasse os vendedores de armas a verificar os antecedentes criminais dos compradores. Por escassos seis votos, a lei foi rejeitada no Senado, no que foi considerado por Obama como "um dia de vergonha para Washington".

Nem um Prémio Nobel da Paz consegue salvar uma nação-suicida. O poderoso lóbi norte-americano das armas argumentou que a lei "feria" a segunda emenda da constituição, que autoriza qualquer cidadão a ter uma arma, mas esquecem-se que data de uma remota época em que pistoleiros faziam a lei em povoações sem policiamento. Salve-se então a segunda emenda, mesmo que isso mate crianças inocentes e o país.

O nosso pacato e pequeno Grão-Ducado tem muitos defeitos e também destas intolerâncias internas. Mas gosto de pensar que são erupções cutâneas isoladas, de elementos enfermos da sociedade, e que nunca se converterão em movimentos de massa como em França ou na Suécia.

Ou será que essa violência está apenas latente, por eclodir? Ele há indícios que nos preocupam. Por enquanto, a paz social e a tolerância vão sendo alimentadas pela prosperidade e estabilidade do país. Mas se um dia esse frágil equilíbrio for rompido, a nossa sociedade continuará tão tolerante como diz ser?

José Luís Correia
in Jornal Contacto, 05/06/2013

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