sebenta de anotações esparsas, pensamentos ociosos, reflexões cadentes, poemas difusos, introspecções de uma filosofia mais ou menos opaca dos meus dias (ou + reminiscências melómanas, translúcidas, intra e extra-sensoriais, erógenas, esquizofrénicas ou obsessivas dos meus dias)
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cahier de notes éparses, pensées oisives, réflexions filantes, poèmes diffus, introspections d'une philosophie plus ou moins opaque de mes journées (ou + de réminiscences mélomanes, translucides, intra-sensorielles et extra-sensorielles, érogènes, schizophrènes ou obsessionnelles de mes journées)

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Ana Moura encantada do fado

No domingo, a fadista pisou os palcos do Luxemburgo pela quarta vez. Depois de ter actuado na place Guillaume II, na cidade do Luxemburgo, em directo na emissão "Portugal no Coração", em 2005, e de um espectáculo no Trifolion de Echternach, em 2009, passou pelo palco da Philharmonie em 2011. Agora regressou para apresentar o seu último álbum, "Desfado".

Os músicos são os primeiros a chegar ao palco. São cinco, todos bastante jovens. Que não engane a idade, vão revelar-se de uma estirpe tão talentosa que até assusta. À média luz do palco do Conservatório de Música da cidade do Luxemburgo, esperam por Ana Moura.

Segundos depois, a cantora entra, de vestido negro deslumbrante, com franjas que lembram o xaile das antigas fadistas das tabernas lisboetas, mas a sobriedade é ofuscada pelo colar de brilhantes, que realça o peito nu ilustre lusitano que canta. "Vestido negro cingido, cabelo negro comprido" é o que cantará minutos depois na sua música "A Fadista". Fala de si mesma?

Mas chamar-lhe fadista é redutor. Aos 33 anos, mais do que simplesmente marcar presença no fado há dez – o seu primeiro álbum saiu em 2003 –, Ana Moura tem-se revelado uma verdadeira força viva do fado em evolução e mesmo em revolução. E foi o que nos veio mostrar na apresentação do seu mais recente álbum.

A guitarra portuguesa dá a nota da primeira música: "Eu hei-de inventar um fado novo..." canta Ana Moura, e reconhecemos a canção "Havemos de acordar". E acorda-nos mesmo, depois de uma tarde solarenga de domingo. "Gudden Owend" [Boa noite] lança a coruchense num luxemburguês perfeito. Pede apoio ao público português para comunicar em francês com os outros espectadores: há luxemburgueses, franceses, alemães, ingleses, americanos, polacos e até um casal japonês. Porque, afinal, o fado é património da Humanidade.


Ana explica que o álbum "Desfado" tem influências do jazz, da música do norte de Portugal, mas não esquece o fado tradicional, em canções como "Com a cabeça nas nuvens" e "A Fadista". Da linha mais tradicional, Ana cantará ainda nessa noite dois fados de anteriores álbuns, "Porque teimas nesta dor" ("Guarda-me a Vida na Mão", 2003) e "Búzios" ("Para além da Saudade", 2007).
A surpresa boa (muito boa!) vai ser a canção que dá nome ao álbum, assinada por Pedro Silva Martins, dos Deolinda (que também compôs "Havemos de acordar"). Ter convidado o mentor dos Deolinda para este álbum prova o rumo insubmisso que Ana quer dar ao fado.

A cantora convidou ainda outros nomes da cena portuguesa, músicos da sua geração, que para ela compuseram "Fado Alado" e "Quando o sol espreitar de novo". São temas de dois insuspeitos fadistas: Pedro Abrunhosa e Manel Cruz (Pluto, Supernada, Foge Foge Bandido, ex-Ornatos Violetas). As letras são muito bonitas, algumas canções ficam longe do fado tradicional, mas a alma continua portuguesa.

A voz de Ana Moura seduz, parece rouca mas é grave, forte, firme, potente, quente, intensa. Amália aqui tão perto. As canções intimistas, como "Amor afoito", são cantadas à flor da pele. "A minha estrela" termina com Ana a tocar numa caixa de música a melodia de "La vie en rose", de Edith Piaf. Noutras, como em "Despiu a saudade", o jazz é não só patente como omnipresente.

A cumplicidade com os músicos instala um ambiente de clube nova-iorquino. Como em "Case of you", um lindíssimo original de Joni Mitchell, um dos ícones do jazz e do folk norte-americanos. fado novo Com Ana Moura, o fado viaja até Nova Iorque, passa por Braga e regressa a Alfama.

Há canções introspectivas, circunspectas e logo de seguida explosões de alegria. Numa canção, Ana quer seduzir-nos com voz sensual e na seguinte quer dançar connosco de mãos dadas. Os espectadores aderem. O fado também é festa. Como em "E tu gostavas de mim", o público acompanha a cantora com palmas. A canção é uma pérola, a meio caminho entre o fado bailado e o folclore, da autoria do talentoso e bem humorado Miguel Araújo, que conhecemos de canções como "Os maridos das outras", "Capitão Fantástico" ou "Fizz Limão". Mas será que o público se apercebe da letra?

Miguel Araújo é hoje o único músico português com coragem para fazer rimar "foguetões" com "neutrões", e de falar de cães em naves espaciais, microondas em Plutão, da banda larga em Arganil e do ciberespaço em Contumil, tudo isto... num fado! É ainda mais genial na voz de Ana Moura.

Nestas ousadias, no humor, nas incursões em outros géneros sente-se o fado a evoluir, a crescer, à nossa frente. Já não são os álbuns experimentais de Paulo Bragança ou de Mísia do início dos anos 1990, nem as influências dos Madredeus, que nem todos os fadistas assumiam. O fado de Ana Moura, como o de alguns dos jovens fadistas, é um fado definitivamente novo, que se assume com o seu q.b. de saudoso e tradicional, mas já não quer ser apenas isso, agora é planetário, transgride as regras, bem à portuguesa, com um sorriso, descomplexadamente, mas só graças a esse impulso espontâneo de libertação pode dar-se ao mundo e recordar-nos que foi assim que nasceu, rufião.

Num interlúdio musical, sem Ana, os cinco músicos – André Moreira (baixo), Pedro Soares (guitarra), João Gomes (teclas), Márcio Costa (bateria) e Ângelo Freire (guitarra portuguesa) – vão mostrar as razões porque a cantora os escolheu para a acompanharem desde Janeiro nesta digressão. Ângelo Freire, de apenas 21 anos, vai mesmo destacar-se e provar que é o virtuoso da guitarra portuguesa de que todos falam.

No encore, Ana vai cantar "Sou do fado" (Fado Loucura) e "Fado Serrano", temas que a ligam a Amália. E vai mesmo ousar acrescentar ao Fado Serrano uma sonora introdução luxemburguesa, "Gudd Nuecht Lëtzebuerg, muito boa noite, senhoras e senhores...", ao qual se rendem os últimos irredutíveis autóctones que estão na sala.

No final do concerto, nas poucas declarações que deu, Ana Moura disse-se contente por ter tanto público jovem aqui no Luxemburgo. "Alguns vierem dar-me os parabéns pela coragem e arrojo de ter feito este disco", diz lisonjeada.

A cantora confessa que estava um pouco "receosa" pela forma como os portugueses cá fora, talvez mais familiares do fado tradicional, reagiriam ao seu novo álbum. Mas, "curiosamente, têm reagido muito bem", garante , "talvez porque o álbum também integra fados mais tradicionais e uma vertente inspirada na música do norte de Portugal".

"Da última vez que vim ao Luxemburgo, trouxe um repertório um pouco mais tradicional. Este disco é realmente muito diferente. Fico muito feliz que os portugueses gostem destas nossas aventuras. É que para além de sermos fadistas, temos o nosso próprio percurso natural. Este disco fazia muito sentido neste momento da minha carreira, pelas colaborações que tenho feito nos últimos anos. Eu queria partilhar isso com o meu público". E explica o seu afecto ao jazz: "o fado e o jazz assemelham-se muito, porque se cantam ambos com a alma, são um canto muito mais interior do que exterior".

Ana Moura é uma voz do fado no jazz ou do jazz no fado? Na noite do concerto, demos por nós, por vezes, a ouvir uma cantora de jazz que se terá extraviado no fado, primo tão próximo da canção lusitana. A guitarra portuguesa entrava sem ser convidada, mas a viagem era tão natural que a canção só podia ser adoptada pelo público, que se deixava embalar. Noutras canções, era assumidamente um fado-jazz, mesmo quando cantado em inglês. Mas como explicar o fado em inglês? Escutar as canções de Ana Moura dispensam qualquer explicação.

Texto: José Luís Correia 
Foto: Tania Feller
(in jornal CONTACTO, 08/05/2013) 


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