A última edição da revista cultural francesa "Muze" dedica 60 páginas à arte portuguesa, não hesitando em chamar à nova vaga de artistas lusos, insubmissos e irreverentes, "A Primavera Portuguesa".
"Face às restrições impostas pelas dificuldades financeiras, Portugal é obrigado a reinventar-se. O reverso da crise pode assim vir a ser o fim de um ancestral recolhimento sobre si mesmo. A cultura toma as dianteiras da mudança e a eterna nostalgia torna-se desejo de futuro".
É com esta introdução do artigo "Novo alento na cultura" da jornalista e escritora Filipa Melo que começa o dossier especial da revista cultural francesa "Muze" (edição de Abril-Maio-Junho).
A publicação que se auto-intitula "a revista trimestral da cultura no feminino", escolhe assim uma perspectiva assumidamente feminina e dá-nos a ver o Portugal de hoje e a arte contemporânea lusa através dos olhos de várias portuguesas: Amália Rodrigues, Agustina Bessa-Luís, Sophia de Mello Breyner Andresen, Paula Rego, Lídia Jorge, Maria de Medeiros, Cristina Branco, Joana Vasconcelos, Filipa Melo, entre outras.
SAUDADE INSUBMISSA
Filipa Melo começa por explicar a origem da saudade, essa palavra tão portuguesa que significa bem mais do que simplesmente nostalgia, pela qual é muitas vezes (mal) traduzida. E do fado (fatum = destino), a canção que é suposto cantar a saudade, mas ao invés a chora.
Socorrendo-se das definições de Teixeira de Pascoaes e de Eduardo Lourenço, a escritora recorda que a saudade "terá nascido" em 1578, no momento em que D. Sebastião desaparece na batalha de Alcácer-Quibir, deixando o país órfão de um futuro glorioso. Dos "Lusíadas" (1572) de Camões, à "Mensagem" (1934) de Fernando Pessoa, a saudade atravessa os séculos portugueses até ao princípio do século XXI, como se Portugal vivesse "numa ficção de império territorial ou espiritual, prisioneiro do passado", e como se apenas sobre as lágrimas do império perdido se pudesse construir um porvir.
Mas, mais importante para Filipa Melo, há hoje artistas portugueses que querem sair desse "labirinto da saudade" (E. Lourenço) e se lançam em epopeias mais pessoais e viradas para o futuro. Os exemplos que dá são Gonçalo M. Tavares e o seu poema-romance épico/anti-épico "Uma Viagem à Índia" (2011), e as obras irreverentes e iconoclastas da artista plástica Joana Vasconcelos (foto supra e foto infra).
Enquanto Gonçalo põe o seu romance "a dialogar em surdina com os Lusíadas", mas narra a busca individual(ista) de uma hiperpersonagem literária e não o destino ultramarino de uma nação, as obras de Joana reciclam objectos tradicionais para lhes dar outra dimensão, numa espécie de "auto-ridicularização" nacional. Nas mãos de Joana Vasconcelos, "a identidade nacional é um jogo lúdico e crítico entre tradição e modernidade". Uma das fundadoras da Muze, Stéphanie Janico, entrevista Joana Vasconcelos, que lhe fala, por exemplo, da génese da sua obra "Carmen Miranda", um sapato de tacão gigante (4 metros!) feito de... panelas em aço inoxidável. Uma obra conceptual que representa "a condição da mulher contemporânea, presa entre a tradição do lar e a tentação da sedução" (foto supra).
A diferença nestes novos artistas portugueses é que são influenciados por uma estética internacional, que fica cada vez menos a dever algo à saudade. "A europeização do pensamento português desenvolve-se em paralelo com a europeização dos costumes", lembra Filipa Melo, citando os filósofos José Gil e Maria Filomena Molder. E Miguel Real, outro dos novos escritores, que considera que "hoje já não estamos em diálogo com a Europa: agora também somos a Europa". Ou Valter Hugo Mãe, "escritor que fala da realidade social contemporânea", e João Tordo, "o mais anglo-saxónico dos jovens autores portugueses".
Mas não é só na literatura que há novos talentos que quebram com o passado. Para Filipa Melo, "A Marcha dos Implacáveis", do músico portuense JP Simões, ou "Parva que eu sou", dos Deolinda, podiam perfeitamente ser o novo hino nacional, em que a nova geração se mostra insubmissa e revoltada face ao destino que lhe é imposto pelos governantes e a crise.
"A actual música portuguesa fervilha de novidades, desde Tiago Guillul a B Fachada e aos Buraka Som Sistema", aponta Filipa Melo. "Na última década, até o fado foi reinventado, com textos mais contemporâneos (...) e saiu da sombra imponente de Amália".
Lula Pena, Camané e Cristina Branco, "a fadista atípica", são alguns dos exemplos desse renascimento do fado. Mas, embora sejam apologistas da renovação da canção nacional, todos se reivindicam descendentes de Amália. Porque Amália é incontornável. A revista aproveita para fazer um resumo biográfico da Diva, da revelação à consagração, passando pelos anos difíceis do pós-25 de Abril, em que lhe era recriminada a proximidade que tivera com o Estado Novo, até à reabilitação nos anos 90, também muito graças a toda uma nova geração de fadistas.
Filipa Melo não esquece a música clássica e destaca a "originalidade e inventividade" de pianistas como Bernardo Sassetti ou Maria João Pires.
"Portugal é actualmente o país das grandes contradições", diz Filipa Melo. No cinema temos, por exemplo, recorda, Manoel de Oliveira, o realizador mais idoso do mundo (103 anos) ainda em actividade, cujas obras "são mais citadas do que socialmente aceites ou realmente degustadas". Mas Oliveira recebe quase sempre apoio estatal, que continua a escapar a talentos mais jovens, como João Salaviza, que recebeu a Palma de Ouro em Cannes (2009), e outros que, face à falta de apoio financeiro, optam por filmar documentários ou filmes de intervenção social", como "forma de resistência".
Face à situação actual, que parece desesperante e sem saída, Filipa Melo cita JP Simões: "Temos que fazer qualquer coisa. Não podemos simplesmente desaparecer no nevoeiro de Alcácer-Quibir. Era o que faltava. Portugal seria o primeiro país da história a renunciar a si próprio".
A ARTE E A LITERATURA LUSAS NO FEMININO
Nesta sua vontade de transmitir uma perspectiva feminina da arte portuguesa, a Muze não podia deixar de dar destaque a uma das artistas plásticas lusas mais importantes da actualidade: Paula Rego (foto infra).
Para a escritora e historiadora francesa Pascaline Balland (d'Almeida), que também colabora neste número, Paula Rego distingue-se por uma "narração interventiva, a denúncia da dominação masculina, as cenas da vida doméstica, a violência recalcada". A obra de Paula Rego "escapa aos rótulos, e essa é a sua força", escreve a historiadora, que evoca a exposição da artista que esteve recentemente patente na filial da Fundação Gulbenkian em Paris.
A "Primavera Portuguesa" ou a arte como solução para a crise
Pierre Léglise-Costa, conhecido tradutor, historiador de arte, crítico e único homem convidado para escrever neste dossier, fala do papel da mulher na arte e na literatura portuguesas. Começa por recordar que "as canções de amigo, de escárnio e de maldizer têm um narrador feminino, apesar de serem escritas por homens". O homem não escreve, parte para a caça, para o mar, para a guerra, o homem é o ser desejado.
Com D. Manuel (1469-1521), a poesia torna-se a arte nacional e os homens assumem-se poetas. O maior de todos Camões, que escreve às mulheres como lhes fala, ou não lhe fossem atribuídos, além das 1.100 estrofes dos Lusíadas, inúmeros poemas de amor e quase tantas conquistas femininas.
Cem anos mais tarde, em França, a "impostura" literária das medievais cantigas de amigo ainda vende. O best-seller de então deve-se à paixão, ao desejo violento, aos sentimentos frustrados e à dor expressas de forma arrebatadora nas cartas da freira portuguesa Sóror Mariana de Alcoforado a um marquês francês. Coligidas em livro em 1669, tornam-se imediatamente um fenómeno de popularidade. Os franceses não acreditam que há em Portugal uma mulher que escreva daquela forma primorosa e o tradutor é tido como o autor. Ainda hoje os críticos disputam a autoria das epístolas: uns defendem que foi Soror Mariana, que realmente viveu em Beja entre 1640 e 1723, outros suspeitam do conde Gabriel de Guilleragues. "Mas", pergunta Léglise-Costa, "como poderia, nessa época, um conde francês conhecer tão bem a vida num convento de Beja?"
Pierre Léglise-Costa fala ainda de outros exemplos de portuguesas que brilharam nas artes: a pintora barroca Josefa de Óbidos (1630-1684); a Infanta Maria-Bárbara (1771-1758), filha de D. João V e que viria depois a ser rainha de Espanha, exímia instrumentista e compositora, e que ainda hoje é considerada a rainha mais culta da história da monarquia espanhola; ou a marquesa de Alorna (1750-1839), que deixou uma vasta obra literária. Para o crítico, cinco mulheres marcaram a literatura do século XX português: a poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen, a romancista Agustina Bessa-Luís e as "Três Marias" – Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno. Cada uma, à sua maneira, pôs a mulher contemporânea no centro da acção, num Portugal que tinha dificuldades em arrancar-se ao século XIX. Apesar da sua delicadeza e de ser proveniente de uma família aristocrática, Sophia foi uma firme adversária do regime salazarista. Agustina vem de um meio rural e a sua prosa, onde a mulher tem sempre um papel preponderante, vai tornar-se incontornável. As "Três Marias" lançam uma pedrada no charco literário em 1972 com as suas "Novas Cartas Portuguesas" (em alusão às cartas de Mariana de Alcoforado), em que os estilos, os géneros e os temas se alternam livremente. Demasiado livremente. O livro faz escândalo e as três são presas, só vindo a ser libertadas quando se dá o 25 de Abril.
Os anos 80, que para Léglise-Costa ficam marcados pela "explosão" na cena literária de José Saramago e de António Lobo Antunes, vêem também aparecer nomes como Lídia Jorge. A revista aproveita para publicar nesta edição o seu conto "O marido" (1997), sobre uma mulher vítima de violência conjugal. A escritora algarvia confia em entrevista à Muze que este texto marca dois episódios da realidade portuguesa a que ela própria assistiu, apesar de 25 anos os separarem e uma revolução.
De passagem, a revista recomenda ainda "As palavras poupadas" de Maria Judite de Carvalho e o romance de estreia da actriz e escritora Leonor Baldaque, neta de Agustina, que se lançou este ano pela Gallimard com "Vita (la vie légère)", escrito em francês.
No cinema, as mulheres também começam a fazer-se notar atrás da câmara nos anos 80. Primeiro com Teresa Villaverde e mais tarde com Maria de Medeiros (na foto infra), esta última com a única longa-metragem feita até hoje sobre a Revolução dos Cravos. A filha do maestro Victorino d'Almeida é aliás uma das entrevistadas pela revista, na qual fala da sua actividade como actriz e realizadora, entre Lisboa, Paris e Hollywood (foto infra).
Outros novos talentos das artes visuais portuguesas, que também merecem destaque neste dossier, são Carla Cabanas (n. 1979), conhecida pelas suas fotos, à qual acrescenta desenhos, textos, som ou vídeo, em obras que interrogam a memória privada e colectiva; e o projecto "Diário da República", do colectivo Kameraphoto, que em 2011, pelo Centenário da República Portuguesa, fez um retrato do país e das mudanças sociais que Portugal atravessa.
O design cuidado e os artigos assinados por especialistas na matéria testemunham um interesse genuíno da revista Muze por um Portugal que não pode senão reinventar-se face à crise. A crise, por causa da qual Portugal aparece actualmente e demasiadas vezes vilipendiado na imprensa estrangeira, foi aqui aproveitada para revisitar um país que, afinal, ainda tem muito (t)alento para se voltar a erguer. É uma escolha editorial. Que aprovamos.
A revista Muze pode ser encontrada nas livrarias (preço: 14,90 euros em França, ou 15,70 euros no Luxemburgo).
Texto: José Luís Correia
Fotos: Anouk Antony
in CONTACTO, 04/04/2012
9 comentários:
Bom texto, bom resumo. Apetece procurar a revista.
Abraço do lado francês da fronteira.
Obrigado e ainda bem que gostou. Apareça sempre. Abraço do mesmo tamanho.
Já agora, uma pergunta que não se relaciona directamente com o blog, esta mensagem, mas com a língua, literatura e cultura portuguesa no mundo: os autores deste blog estão a favor, contra o novo acordo ortográfico de 1990, ou a questão não vos tem suscitado reflexão?
Obrigado
Caro leitor e confrade bloguista, como deve depreender ao ler este blogue, não aplico o AO, nem devo aplicá-lo de tão cedo. Porque simplesmente vai contra a minha maneira natural de escrever e porque no meu blogue mando eu. A questão tem-me suscitado reflexão, claro: considero que o AO se imporá com o tempo, como o de 1911. Não será a minha escolha, e por isso continuarei a escrever como aprendi, até que já não tenha escolha.
Caro amigo,
A minha questão prende-se com o facto de eu ser avesso a essa manigância jurídico-político-linguístico, que está a ser aplicado ilegalmente pelos Estados Português e Brasileiro, sem que duas condições essenciais para a oficialização da coisa, nos 8 Estados (a confecção de um Vocabulário Ortográfico Comum e a homologação por todos os Estados, sendo que Angola e Moçambique não se mostram interessados em implementá-lo, bem pelo contrário), se cumpram. Além de estar mal feito cientificamente, de haver inúmeros pareceres científicos e jurídicos contrários que os sucessivos governos têm ignorado, de estar a gerar inúmeras confusões e mixórdias, a ponto de no Diário da República Portuguesa se ler "fato", à brasileira, e de im websites portugueses se ler "contato", à brasileira…
Passando adiante, no Facebook há grupos que animam o debate sobre o assunto. E há algum tempo está a decorrer uma recolha de assinaturas (neste momento reforçada por uma campanha nas Feiras do Livro de Lisboa e Porto, animada por voluntários), no âmbito do grupo de Iniciativa Legislativa de Cidadãos sobre o Acordo Ortográfico de 1990 (http://ilcao.cedilha.net/) com o objectivo de cidadãos levarem à Assembleia da República, sem a dependência partidária, uma iniciativa legislativa. Legalmente há um número mínimo de assinaturas para o conseguir, e consegui-lo seria uma pedrada no charco da vida política capturada pelos partidos, e assumida por cidadãos.
A ideia é, não estando eu presente, mas vivendo por aqui, se não seria possível, na comunidade portuguesa, promover uma recolha de assinaturas para enviar para Portugal e juntar às que lá se recolherem. Que o jornal Contacto, por exemplo, ou a Rádio Latina (sem ser obrigatório que tome posição sobre um ou outro lado do debate), ou uma associação portuguesa, tivesse folhas para as pessoas irem assinar, e divulgasse a iniciativa. Quiçá se promovessem debates sobre o assunto. Recentemente, esteve no Luxemburgo, na iniciativa Printemps des Poètes, Vasco Graça Moura, cujas posições sobre o tema são bem conhecidas (infelizmente não pude estar presente).
Como disse, eu vivo do lado francês. E os Portugueses que conheço até não se preocupam muito com o assunto. Outros já aderem à nova estulta grafia. Mas ainda tentarei motivar alguns a assinar… Aliás, os debates têm sido vivos em Portugal, com encarregados de educação a escreverem cartas ao Ministério da Educação… Com a declaração dos Ministros da Educação da CPLP a recomendar que se revejam constrangimentos na aplicação do acordo, e o Secretário de Estado da Cultura a dizer que não haveria revisão nenhuma…
O meu propósito, e por isso lhe coloquei esta questão, que é também digamos um pedido de apoio era se e como tal se poderia fazer, por estas bandas.
Abraço
Penso que alguém que o pode ajudar a lançar essa petição é a CCPL (Confederação da Comunidade Portuguesa no Luxemburgo, tel. 00352-290075).
Eles têm e-mail?
Site: http://www.ccpl.lu/
E-mail: ccpl@ccpl.lu
Obrigado. Vou tentar…
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