Gosto de livros de viagens em geral, de Gonçalo Cadilhe (deu duas vezes a volta ao Mundo) a Miguel Sousa Tavares (viagens pelo deserto), passando por
Bruce Chatwin e Paul Theroux (que adora viagens em comboio). Nuno Ferreira passará a ser o novo autor com quem deverei contar na minha prateleira das viagens.
"Portugal a pé" conta a sua aventura pela província profunda, de Sagres a Cevide, a aldeia mais a Norte de Portugal, calcorreando o Barrocal algarvio, subindo pela raia alentejana, deambulando pelas Beiras, vencendo a neve na Serra da Estrela, puxando até Trás-os-Montes, desbravando o Minho. Um incursão no país real, como agora se
diz. Entre Fevereiro de 2008 e Novembro de 2010.
Primeiro há a coragem de um homem em enfrentar a estrada, a geografia, a natureza e os elementos. Depois, a vontade de um jornalista de escrever sobre o que também é Portugal neste princípio de século XXI.
Uma das primeiras pedradas no charco que o autor dá, e bem, é desmistificar a tal hospitalidade que dizem que é "natural" nos
portugueses. Afinal, como eu próprio já o vivi, os portugueses tanto
sabem ser acolhedores e hospitaleiros como provincialmente carrancudos e
desconfiados. Esta é uma característica que o autor vai, infelizmente, encontrar em todos os cantos do país. Passou por ladrão, pedinte, drogado, vagabundo e até contrabandista.
Gostei deste mapa do país, longe das
grandes urbes, porque há mais Portugal do que o do Terreiro do Paço, há um
Portugal a agonizar longe da capital, mas também a encontrar soluções
geniais para (sobre)viver, com bibliotecas ambulantes, ecomuseus, turismo rural e televisões regionais.
Neste retrato fiel de Portugal no princípio do século, numa mesma aldeia coexistem os cibercafés e as carroças de burros. Num momento, o jornalista escreve no seu laptop num castro recuado no Minho, no outro conversa com velhos que só já têm como ocupação ver passar a vida inexorável, sentados na soleira da porta de casa, encostados ao balcão em pedra de uma taberna, disfrutando de um bagaço, de um café e de um cigarro, ou maldizendo a vida porque têm de tratar da horta sozinhos, porque os filhos emigraram todos para Lisboa ou para França.
Nuno Ferreira cruza-se com ciganos, dos que pedem dinheiro, mas também dos que o convidam para dormir a sesta junto ao acampamento, dos que têm uma carroça, mas também dos que vão de automóvel à cidade, cruza-se com gente tacanha, provinciana, que corre a esconder-se em casa quando o viajante forasteiro assoma à entrada da aldeia, mas também conhece pessoas afáveis que o convidam naturalmente a partilhar uma sopa, um borrego ou uma lampreia em convívio fraternal, em espírito familiar até. Tudo isso também é Portugal hoje.
Gostei de como o autor conta as situações que viveu,
da radiografia às gentes, dos bons momentos e das situações extremas,
como aquela em que se perdeu no Marão, ficou pendurado numa falésia e teve de ser resgatado pelos bombeiros de Baião. E de como um dos jovens soldados da paz arriscou a própria vida para o salvar.
Este é o Portugal que existe, que vive, que sofre, que vibra, que é abnegado e não resignado...
Nuno Ferreira fala-nos in loco das mazelas da desertificação do país rural, das vivendas de emigrantes - amarelas, roxas, com torreões germânicos e telhados suíços, fechadas o ano inteiro - que descaracterizam as aldeias típicas, do envelhecimento demográfico da província, entregue a si mesma, esquecida pelo poder central, de horizontes inteiros desolados que hoje são apenas cinza, dizimados pelos incêndios do Verão português.
Com este testemunho de Nuno Ferreira, essas realidades, que todos conhecemos mas das quais não temos verdadeiramente a noção (não, não temos, acreditem!), deixam de ser apenas uma estatística e uma banal reportagem de 2 minutos no final de um telejornal, que esquecemos coniventes entre o jantar e a telenovela.
Mas o autor também nos recorda e nos faz (re)descobrir as belezas esquecidas e escondidas do nosso país, as praias fluviais naturais, as cascatas majestosas, a pureza de muitos rios portugueses, a magnificência dos montes, das matas e das florestas nacionais, das praias algarvias (ainda) não devastadas ou dos montados alentejanos sumptuosos no seu sossego.
Gostaria que o autor tivesse falado mais de coisas pessoais, ou melhor, de como viveu certas coisas interiormente. Diz
às tantas que leva livros na mochila, eu gostaria que tivesse falado
mais dessas leituras e das suas viagens interiores. Gostaria que todo o livro fosse mais pessoal, à semelhança do
"capítulo-confissão", em que se entrega ao leitor, admitindo que voltou a cair no alcoolismo nesta sua viagem por Portugal. Um país onde alcoolismo rima com hospitalidade. "Vai mais uma Aldeia Velha? Um café com cheirinho?", todos conhecemos esta "hospitalidade" de café. Como recusar um último bagaço, um "medronho amigo" a quem nos recebeu calorosamente? Foi um dos capitulos que mais gostei. Acho que é preciso muita
coragem para se ser sincero com quem nos lê.
O autor confia neste seu diário de viagem que é muitas vezes interpelado com a pergunta de porque está a fazer esta jornada a pé, se é
promessa, se é peregrinação a Fátima, perguntam se não tem carro, "atão, mas nem uma bicicleta
tem?...".
Eu acredito que esta viagem ao país verdadeiro só podia mesmo
ser a pé, o que lhe permitiu ter o tempo e o vagar de parar e conversar, observar, ver acontecer, viver e
conviver, e partilhar o pulsar de cada povoação. Parabéns ao Nuno Ferreira por este trabalho que ainda ninguém
tinha feito, uma incursão feita na primeira pessoa no país profundo. Um livro pioneiro.
Nuno Ferreira prepara-se para regressar à estrada e fazer "Os Açores a pé". Eu aguardo pacientemente pelo seu segundo livro desta colecção, que poderá vir a ser um tríptico e que passará a ser obrigatório em cada biblioteca portuguesa.
José Luís Correia
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