Manhã de Inverno 2
Cai a neve, sem querer saber, sobre a multidão absorta, na mais pura indiferença polar. Corro ao acaso, refugio-me do papão chamado solidão, sonhando com um anjo do Daugava que um dia longíquo, na idade da inocência, cantou para mim canções da Primavera.
As pessoas gulosas nas lojas repletas das últimas novidades prepararam gordo o Natal. Querem peúgas pesadas suspensas nas chaminés, querem sapatinhos recheados como perus, querem, como se o querer bastasse e não o crer. Não acreditam nem reparam que a lareira está apagada e fria, que ninguém cuidou de alimentar a chama e que os sapatos há muito estão sem sola.
Casacos grossos e quispos, gorros e luvas de lã para não deixar entrar a realidade. O homem cria bolhas para viver assim, refugiado de tudo, escondido de si. Bolhas de lã, bolhas de lona, bolhas de cabedal, bolhas de seda e poliéster, de cimento e tijolo, de ferro e aço, de vidro e plástico, bolhas de ar, invisíveis, bolhas imaginárias e intocáveis, bolhas que não existem, virtuais, paranóicas e esquizofrénicas... O homem vive num tubo de ensaio a ensaiar-se a si próprio.
Passa uma ambulância, a mãe ralha com o menino que deixou cair o gaufre com creme no chão, um casal discute, outro beija-se, uma rapariga olha-se ao espelho no reflexo da montra de vestidos de noiva, um puto de auscultadores nas orelhas, vestido de baggy-trousers, arrasta os ténis all-stars pelo passeio, fugitivo virtual de um mundo que não o quer e do qual ele foge por não o querer que não o quer por ele fugir dele. De um tímpano ao outro, a grande doses de decibéis, injectando revolta, inventa revoluções que não passarão de grandes teorias e do estado semi-onírico porque é demasiado difícil mudar o mundo, mas ainda é mais difícil mudar-se a si próprio. “Toda a gente pensa em mudar a Humanidade, mas ninguém pensa em mudar-se a si mesmo”, já era assim no tempo de Tolstoi.
Pensar que o erro nunca está em nós é o primeiro erro. Pensar que o erro está sempre em nós é anemia da alma. A virtude está no meio. Algures no meio de nós. Como o coração.
Duas adolescentes de quispos fluorescentes, jeans rebaixados e apertados, botinas cor de rosa berrantes, rimel egípcio nos olhos, conversam sobre pães, emoções, sentimentos, amor e sexo, deitando-se assim de costas sobre a sua infância, tentando ainda escapar-lhe ilesas. Todos nós tentamos sobreviver à nossa infância, à nossa adolescência, à nossa família. A idade adulta chega quando nos voltamos a reconciliar com todos eles e connosco também. Há quem nunca fique adulto. Há quem nem sequer tenha consciência disso.
Pensando na minha vida, cruzando as artérias principais da minha alma. Sorvo o café, como o faço com a vida, amarroto o guardanapo de papel como os meus dias, lambo o colher como a esperança, rasgo aos bocadinhos o pacote do açúcar como a minha alma que espalho sobre a mesa em pó. Sujei o pires e a mesa de mármore preto com migalhas da minha existência.
A empregada adolescente limpa a mesa. Asiática, gira, demasiado magra, tem dentes salientes que lhe estragam os sorrisos demasiado frequentes, como se quisesse sempre agradar. Peço outro cappuccino, numa chávena grande. Ela esmera-se. Demora um minuto e vinte segundos a servir-me, com um largo, rasgado, aberto, inocente, generoso, acolhedor, hospitaleiro, caloroso, servil sorriso. A chávena já não é a mesma. Tem o meu nome estampado. Sorrio da coincidência e da inconsciente clarividência. O que a fez escolher está chávena mais do que outra qualquer? Foram as energias universais que canalizaram as ondas fraquejantes emanando do meu cerebelo ao impulso eléctrico do neurónio que comandou a sua retina e a sua mão na direcção desta xícara? Estas coisas acontecem todos os dias...
Jogado num canto, inventado fins do mundo, como se o mundo lá fora não chegasse, torturo a mão, a caneta e este papel que mais tarde será feixes electrónicos de luz num ecrã de computador, mas merecia melhor sorte, não merecia?, como ser origami ou caderno ordenado de aluno assíduo que ainda acredita que o mundo é redondo. Em vez disso é antro, receptáculo alacre e sedento, baú de inépcias tempestuosas, mundo quadrado e fechado, introspectivo, introvertido, frustrado...
.
“O que transportas aí?...”, interpela-me o divino, com a cabeça fora da máquina e o dedo inquisidor, apontando o meu colo.
Segurando o meu caderninho imbecil contra o meu peito febril, como um idiota, respondo timidamente num orgulho dissimulado e arrogante:
“São letras, Senhor!”
E num gesto grandiloquente e generoso, como o fez ao mar, abre o meu colo e brotam poemas e prosas como rosas.
“É milagre, Senhor!”
“Não idiota, sou Eu que escrevo direito por linhas tortas!”
in blogue "Cadernos do Gaspar, vol.1"
(http://cadernosgaspar2.blogspot.com)
sexta-feira, 10 de dezembro de 2010
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