sebenta de anotações esparsas, pensamentos ociosos, reflexões cadentes, poemas difusos, introspecções de uma filosofia mais ou menos opaca dos meus dias (ou + reminiscências melómanas, translúcidas, intra e extra-sensoriais, erógenas, esquizofrénicas ou obsessivas dos meus dias)
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cahier de notes éparses, pensées oisives, réflexions filantes, poèmes diffus, introspections d'une philosophie plus ou moins opaque de mes journées (ou + de réminiscences mélomanes, translucides, intra-sensorielles et extra-sensorielles, érogènes, schizophrènes ou obsessionnelles de mes journées)

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Estórias de Café 4

José Luís Correia (aka Alexandre G. Weytjens) by Paulo Lobo

"Café aos bocados"

É para isto que serve um café, para repousar do dia, refugiar-me do mundo e atestar-me em jornais e literatura. Ler, ler, ler e bebericar cappuccinos entre páginas. Alguns amigos nunca conseguiram perceber porque perco eu os poucos instantes do dia a ler! Não perco tempo, ganho, ganho anos de vida, amigos, aventuras, viajo. E eles ficam sempre desconcertados a ponderar na minha insanidade.

Enquanto conversa comigo, Peter, o patrão do café prepara-me um capuccino. Numa chávena pré-aquecida deita um espresso dopio, leite quente, com uma capa de espuma de leite. O acabamento é feito com perícia: uma flor desenhada na espuma ao juntar o leite. "Tem que ser à primeira", diz-me, contando-me que a arte do cappuccino lhe foi transmitida por um torrefactor de Florença, que ainda hoje lhe fornece o café.

Provo e compreendo porque aqui regresso. Está delicioso! Um grande, genuíno e generoso cappuccino à italiana, com uma compacta camada de espuma de leite, num café bem encorpado.

"No cappuccino, o importante é dominar os três 'M': Máquina, Mistura e Mão", continua Peter. "É preciso conhecer a máquina e saber manipulá-la para tirar o melhor café. Depois, é preciso saber que quantidades de café e espuma de leite misturar. A mão que prepara tem de saber fazer o resto, a espessura da espuma, por exemplo", mostra-me. A dose de espresso que o cappuccino leva também tem o seu segredo. "As pessoas pensam que espresso quer dizer 'feito à pressa', mas a verdade é que significa feito 'espressamente' [expressamente] para uma pessoa ou ocasião, ao contrário do café, que antigamente era feito em grande quantidades", explica Peter. E mais não quer dizer, ou não fosse o segredo a alma do negócio. Mas deixa escapar que usa sempre água filtrada para o café, nunca demasiada mineralizada, e leite fresco, gordo, sem ser reaquecido. "Tudo isso influencia o sabor", revela. Depois há as preferências: cappuccino polvilhado com pó de cacau, chocolate ou xarope de caramelo, piccolo cappuccino, marocchino e por aí fora, num cardápio que parece nunca mais acabar de variedades de café misturado com tudo o que se possa imaginar de saboroso.

Um dos pecados que costumo cometer quando aqui me perco é o "white moccha", leite quente, espresso, com chocolate branco no fundo do copo, ou o "monte bianco", leite quente, espresso, pó de cacau, servido num cálice. "O Peter faz o melhor mocchaccino da cidade", lança sonora uma loira, de olhos azuis, que interrompe o nosso ritual. Americana, pela pronúncia. Veio sentar-se ao meu lado e mete-se na conversa. Cruza a perna na cadeira alta, ajusta a saia do tailleur vermelho até ao joelho, o lenço no pescoço alvo não desvenda o decote, alisa o cabelo atrás da orelha e sorri-nos: "O café que aqui fazem dá vontade de molhar o dedo e comer aos bocados".

(texto publicado no catálogo da exposição "Coffee Talks", de Paulo Lobo, patente de 17 de Novembro a 20 de Dezembro de 2010, no Instituto Camões, Luxemburgo)

Paulo Lobo by Ricardo Vaz Palma

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