Café com açúcar
Gostava de escrever como quem pinta, escrever os tampos das mesas em madeira, o negro dos cantos e os círculos concêntricos dos nós, escrever os eflúvios adocicados dos croissants, as línguas misturadas e as papilas seduzidas a estalar, os cafés com leite, os éclairs, o papel de parede a imitar parede (nunca percebi o propósito!), as conversas das pessoas, daquela mãe com a filha, “limpa a boca, querida!”, as duas velhas cabis-baixas a resmungar contra os vizinhos e a vida, o casal que agora chega e partilha um pequeno-almoço romântico, a rapariga na mesa do fundo, na minha diagonal, que nervosamente bebe um café fumante, cabelo castanho claro em rabo-de-cavalo, rosto oval, branco, pequeno, olhos irrequietos e claros, casaco preto, blusa de gola alta bordeaux, peito que tenta passar despercebido. Morde os lábios. Corre os contornos da mesa com a mão. Os dedos finos, alvos, frágeis, hesitantes. Há no seu olhar um apelo, uma procura, uma interrogação. É o que gosto de pensar, sempre que cruzo desconhecidas sozinhas.
Ela observa-me, como perguntando: “É para mim que estás a olhar?” E eu respondo do meu canto, sustentando o seu olhar, esboçando um sorriso. Agora reparou com certeza em mim. Sorri também, disfarçando. Bastou um sorriso meu? Sorvo o café com leite.
.
Uma amiga senta-se à sua frente. Sorrisos, abraços, conversam. Mas o seu olhar regressa sempre ao meu. Eu escrevo, ergo o olhar, voltar a mergulhar o rosto no caderno, e escrevo. Trago a chávena aos lábios e no movimento volto a fitá-la, ela repara, vê, não se mexe, apenas as pupilas tremem como se tivesse ouvido a minha ordem de guardar a posição, os lábios púrpuros semi-abertos e suspensos para a eternidade no gesto da minha mão, na trajectória da minha pupila.
Uma bela desconhecida numa manhã de Inverno.
O pulóver de gola alta escolheu-o esta manhã porque estava frio e a chover. Porque prefere sentir-se confortável a sexy. Sobretudo num dia como estes. Frio. Não tem nada previsto. Uma manhã vazia, como tantas outras. O seu único prazer é o olhar de um estranho, um olhar prescrutador sem ser intimidante e impúdico, o olhar silencioso de um indivíduo com o seu quê de misterioso, que não tem nada de conquistador, antes de familiar e apaziguador. Um olhar estranho de um estranho.
Lá estou eu a confundir desejo e realidade.
Ela levanta-se. Vem na minha direcção. O olhar fixo em mim. Vai abordar-me, dirigir-me a palavra? Vai falar comigo, sentar-se na minha mesa? Vai perguntar se nos conhecemos? Ou perguntar-em o que quero e pedir-me para parar com os meus olhares indecentes? Devo levantar-me, cumprimentá-la? Ela lê a interrogação no meu rosto e sorri ligeiramente. Passa por mim, a amiga segue-a para as traseiras do café e entram na cozinha. Afinal trabalham aqui e a amiga é uma colega. Reaparecem alguns minutos depois com um avental verde. Ela arruma os pratos atrás do balcão, limpa o tampo do balcão, conversa com as outras empregadas, serve alguns clientes. Um capuccino, dois expressos, um pãozinho com chocolate e dois suspiros.
Não me esqueceu. Num passo ligeiro, em elipse, serpenteando como um rio que não quer desaguar no mar, aproxima-se. Deseja saber se, além do seu sorriso aberto e luminoso (é o que percebo, mesmo se ela não proferiu as palavras), desejo mais alguma coisa.
“Mais café?...”
“Heu...sim, pode ser, obrigado!”
Três minutos depois satisfaz-me o desejo. Pede licença para encontrar lugar para a xícara na mesa cheia de revistas abertas, jornais dobrados e cadernos atravessados, mil folhas.
“Cuidado, não quero entornar café nas suas notas. Parece importante...”
Miro-a, olhos nos olhos.
“...o que está a escrever!”, completa, apontando com o queixo para a mnha sebenta.
“Ah...Não estou a escrever!”, acho oportuno rectificar.
Pestaneja como quem olha melhor.
“Heu...não está a escrever?”, insiste, perante o óbvio.
“Não!... Estou a desenhar!”, explico.
O seu olhar perscruta os meus rascunhos, as minhas frases ascendentes e descendentes, as minhas letras ora redondas ora angulosas e hieróglíficas. Resolve não me corrigir (é perigoso contradizer os maluquinhos!, deve pensar agora).
“E já agora, pode saber-se... Está a desenhar o quê?
“Você!”
segunda-feira, 6 de dezembro de 2010
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