sebenta de anotações esparsas, pensamentos ociosos, reflexões cadentes, poemas difusos, introspecções de uma filosofia mais ou menos opaca dos meus dias (ou + reminiscências melómanas, translúcidas, intra e extra-sensoriais, erógenas, esquizofrénicas ou obsessivas dos meus dias)
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cahier de notes éparses, pensées oisives, réflexions filantes, poèmes diffus, introspections d'une philosophie plus ou moins opaque de mes journées (ou + de réminiscences mélomanes, translucides, intra-sensorielles et extra-sensorielles, érogènes, schizophrènes ou obsessionnelles de mes journées)

domingo, 5 de dezembro de 2010

Estórias de Café 2

Não se chora sobre açúcar derramado

O homem de óculos e barba, sentado de perna magra cruzada, bebe café. As suas mãos recusam o açúcar e correm nervosamente o tampo da mesa em madeira antiga. Ajeita o colarinho ensopado em suor, olha-se no espelho velho, cheio de manchas, alisa o fato amarrotado e passa os dedos pelos cabelos em batalha. Parece querer erguer-se e sair, mas fica sentado.

Os seus olhos colidem com os meus. Espero que seja ele a desviar o olhar, intimidado no seu acto de me observar. Finalmente, baixo eu os olhos, e concentro toda a minha atenção na delicada tarefa de dissolver o açúcar no café.

Quando volto a ele, o gajo ainda está a olhar para mim. Perscruta-me, como se o seu itinerário apenas dependesse de mim. Não estou para aturar isto. Quem é que ele pensa que é. Vou até lá. Enfrento-o e digo-lhe: "O que é que foi? Para onde estás a olhar? Estás mal, muda-te! Eu estava aqui primeiro. O melhor é pores-te daqui para fora! Há um de nós que aqui estás a mais..."

Ele fita-me. Como se não entendesse, um nada preocupado, e encolhe os ombros. "Vai!", quase grito, fosse ele surdo.
"Vai, sai daqui, estás à espera de quê?" Ele sorri de braços bambos e encolhe os ombros novamente. Acha-me graça, o idiota?
Enfureço. Chego-me a ele, pego-lhe num braço violentamente, levanto-o como uma marioneta e arrasto-o até à porta. "Vá, põe-te daqui para fora, tratante…". Prescruta-me intrigado. Sem animosidade, com ar de asno, fica especado na soleira da porta olhando-me. Olhos nos olhos.

Sinto uma tontura, como se ele me possuisse. De onde está, sem se mover, puxa-me até ao seu lugar. Como se me sugasse. Não é humano. Desincorpora-se. Transfigura-se. Olho-o mas já não sei que vejo. A mim. Clonou-me? É como um espelho?
Reconheço-me enfim. Este palerma esquizófrénico sou eu. Sou eu, violentando-me para me extrair de mim mesmo, para ir apanhar ar lá fora, fora de mim. E o açúcar derramado na mesa do café.

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