sebenta de anotações esparsas, pensamentos ociosos, reflexões cadentes, poemas difusos, introspecções de uma filosofia mais ou menos opaca dos meus dias (ou + reminiscências melómanas, translúcidas, intra e extra-sensoriais, erógenas, esquizofrénicas ou obsessivas dos meus dias)
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cahier de notes éparses, pensées oisives, réflexions filantes, poèmes diffus, introspections d'une philosophie plus ou moins opaque de mes journées (ou + de réminiscences mélomanes, translucides, intra-sensorielles et extra-sensorielles, érogènes, schizophrènes ou obsessionnelles de mes journées)

domingo, 1 de novembro de 2009

dos oráculos, dos tempos e outros mistérios

Nunca fui de consultar pítias e oráculos, mas eles sempre souberam fazer chegar até mim as suas mensagens mais ou menos absconsas.

Assim, e segundo esses leitores das inúmeras linhas temporais que se vão desenhando, o rio Lethes devia ter-me levado na sua corrente do olvídio várias vezes antes de eu sequer poder chegar aos quatro anos de idade. Mas, com duas mães super-protectores em casa, passei a viver quase dentro de uma redoma. Talvez seja por isso que ainda hoje sinto que passei pela meninice quase sem dar por isso, como se flutuasse em algodão, como se fosse algo indistinto e impalpável. Mas feliz, com muito amor.

Depois, por um tempo o tempo pareceu ter-se esquecido de mim.

Aos treze anos fui eu que me persuadi a mim próprio que não chegaria aos quinze. Tinha-me identificado de tal maneira com o diário de Anne Frank, que andava a ler, que passei a acreditar intimamente que era a sua reincarnação. As nossas linhas do tempo teriam inefavelmente a mesma duração. Forcei as coincidências e encontrei tantos pontos comuns com a sua vida que era inegável que só podia ser isso. A conclusão era evidente: o meu tempo estava contado. Comecei a ter pensamentos negros e pintei a minha vida da mesma cor.

Por uns tempos, pelo menos. Nunca fui um pessimista. E é isso que tem sido a minha sorte.

Quando cheguei aos 16, a adolescência tornou-se mais prometedora e pensei que tinha escapado ao destino. Era um sovbrevivente.

Tinha eu 28 anos, os velhos vates voltaram a prevenir-me: afinal, eu não escapara, estava simplesmente a monte, do destino. A minha liberdade condicional duraria no máximo cinco anos.
Fiz o que me ordenavam os médicos e voltei a sobreviver.

Ontem, mais uma vez sem que fosse eu que fizesse apelo a eles, veio novo aviso. Como se o destino fosse duas forças opostas em constante batalha: a linha primária e as linhas secundárias.

Mas, escapei-lhe tantas vezes que já deixei de acreditar há muito tempo na providência.

Passei a acreditar no tempo, como uma coisa desdobrável, flexível, uma corda na dobra do universo. E eu um mero viajante. Preciso saber é agarrar a boa corda. Ou enganar-me, cair com o cu no chão e voltar a tentar.

Acredito hoje também que sou eu que desbravo os meus próprios trilhos com as forças e as fraquezas da minha energia vital. Decido eu por onde ir. Não ir por aí, mas por aqui, mesmo que seja um caminho errado. Mas é o meu caminho errado. E se for, hei-de corrigir a rota na próxima encruzilhada. Espanto as vozes, quebro as bolas de cristal no chão, com fracasso e estrondo. E mantenho-me fiel aos meus próprios astrolábios. Só sei viver assim.


"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
(...)
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
(...)
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

"Cântico Negro", de José Régio
(in "Poemas de Deus e do Diabo", 1925)

1 comentário:

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