Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
(...)
...nem dei pela minha vida...
Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.
(...)
Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projecto:
Se me olho a um espelho, erro-
Não me acho no que projecto.
Regresso dentro de mim,
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.
Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.
(...)
E sinto que a minha morte -
Minha dispersão total -
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.
Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.
(...)
E tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?...Ai de mim!...
Desceu-me n'alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.
Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.
Perdi a morte e a vida,
E louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida,
Eu sigo-a mas permaneço...
(...)
excertos de "Dispersão", de Mário de Sá-Carneiro, Maio de 1913 (Paris)
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