sebenta de anotações esparsas, pensamentos ociosos, reflexões cadentes, poemas difusos, introspecções de uma filosofia mais ou menos opaca dos meus dias (ou + reminiscências melómanas, translúcidas, intra e extra-sensoriais, erógenas, esquizofrénicas ou obsessivas dos meus dias)
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cahier de notes éparses, pensées oisives, réflexions filantes, poèmes diffus, introspections d'une philosophie plus ou moins opaque de mes journées (ou + de réminiscences mélomanes, translucides, intra-sensorielles et extra-sensorielles, érogènes, schizophrènes ou obsessionnelles de mes journées)

domingo, 5 de agosto de 2007

A bruma e a madrugada

Há mais coisas que nos ligam ao rei Hamurabi (*1) do que ao biónico Ralph 124C 41+ (*2). Estamos hoje mais próximos dos primeiros egípcios do que do próximo homem "transgénico" (*3) ou ciborgue (*4). E embora sejamos já o "rascunho" do embrião desse primeiro humanóide modificado, se seguirmos a linha imaginária traçada há mais de um século por Darwin, não podemos deixar que essas hipotéticas ramificações da nossa eventual evolução sejam desculpa para outras derivas.
Consequência directa da nossa entrada fulminante na era industrial-tecnológica, o nosso poder aumentou exponencialmente mais depressa do que a nossa sabedoria. É já um lugar comum dizê-lo. Mas mesmo assim...
Hoje mais do que nunca, numa época em que, não contentes por já termos feito recuar e depois dizimado a flora, a começámos a manipular geneticamente para nosso proveito, numa altura em que alguns cientistas já trabalham com células estaminais em busca da panaceia universal e cada vez mais pós-modernos Prometeus aventam a possibilidade da clonagem humana, é preciso atentar para que não sucumbamos nem ao mal nem à cura. Devemos saber avaliar e usar com inteligência, ética, moral, e sobretuto cautelosamente, os poderes que vamos tendo à nossa disposição.
A nossa histeria pela potência nuclear matou milhares de seres humanos nas guerras e catástrofes do século passado, mais do que em todos os conflitos e cataclismos juntos nos séculos anteriores, quando devia ser precisamente a razão de um salto evolutivo e a solução para todos os problemas energéticos. Por ora, gostamos de sentir que dominamos esse recurso, mesmo se temos consciência de que ainda não é bem o caso.
Hoje, mais do que aniquilarmos o que somos, podemos alterar tudo aquilo que ainda podemos vir a ser.
Estamos a alcançar em poucos séculos o equivalente ao que a anterior era – que começara com a invenção da escrita cerca de 4 mil anos antes de Cristo – levou milénios a conquistar. O próximo boom ainda demorará, mas virá mais depressa do que se supõe.
E embora pareça, não é o fim. É apenas o princípio, a aurora da Humanidade. E apesar da bruma primitiva que nos submerge, há que abrir bem os olhos ramelosos.
Daqui a muitos séculos e eras, os nossos descendentes, mesmo que já nem se nos assemelhem física e culturalmente, partilharão connosco, quiçá, os instintos, como defendiam Jung e Freud. Ou até alguns valores comuns, como nós a Filosofia com Sócrates.
Mas se derivas houver, o único frágil mas indissociável cordel que ainda nos ligará a esses seres orwellianos será apenas a História. Seremos o seu Passado e eles o nosso Futuro. A História não como a interpretação dos factos dignos de registo pela nossa memória colectiva, e cujo valor dos mesmos se altera consoante os critérios socioculturais dos que os estudam e analisam nas diferentes épocas, mas a História reduzida à sua expressão mais simples, a linearidade temporal (História=Tempo). A História será a única a nos unir, resistindo às revoluções, choques e contra-choques civilizacionais, aos cataclismos naturais, às eras e até aos cometas ómega (*5). Mas o que restará de humano em nós?
As gerações vindouras, que nos irão substituindo neste planeta ou mesmo já noutro, nos seus primeiros tempos de aprendizagem (vulgo "escola"), entre uma aula de Matemática Fractal e uma de Cosmologia Dimensional, sorrirão, por ventura, ao aprenderem em Sociologia Primitiva Humana que os seus antepassados eram barbaramente carnívoros neste nosso tempo primário, e que lutavam e se matavam por hegemonias, delimitavam territórios, como se fizessem parte de uma matilha. E que viviam obcecados e assombrados – como Fukuyama, Toffler, ou mesmo os mais fantasistas como Fontebrune e o resto de nós – com esse temor infantil do fim da história, do fim dos tempos, do fim da Humanidade. E que esse medo ancestral, os levava a se auto-mutilar, auto-destruir e até alterar celularmente.
Os ponteiros do Haloceno (*6) no relógio de Eon (*7) assinalam meio-dia e pouco no ciclo de vida do nosso planeta. A Humanidade, essa, mal rompe a madrugada.


(texto de JLC, Contacto, 01/08/2007)
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1*- Hamurabi: primeiro rei do império babilónico, 1792-1750 a.C.
2*- Ralph 124C 41+: personagem do séc. XXVII, no romance homónimo de antecipação, editado em 1911, pelo autor norte-americano de origem luxemburguesa, Hugo Gernsback [1884-1967], pai da ficção-científica moderna.
3*- transgénico: (neologismo) geneticamente modificado.
4*- ciborgue: organismo cibernético, meio-homem, meio-robô.
5*- cometa-ómega: vulgarizado pela ficção-científica, grau último de perigo dos cometas; cometa que se atingisse a Terra, a destruiria maciçamente.
6*- Haloceno: da época Neolítica até aos dias de hoje, os últimos 10 a 20 mil anos.
7*- Eon: maior subdivisão do tempo, que se divide em diversas eras geológicas [actualmente vivemos no Eon Fanerozóico, na Era Cenozóica, no Período Quaternário, na Época Holocena].

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