sebenta de anotações esparsas, pensamentos ociosos, reflexões cadentes, poemas difusos, introspecções de uma filosofia mais ou menos opaca dos meus dias (ou + reminiscências melómanas, translúcidas, intra e extra-sensoriais, erógenas, esquizofrénicas ou obsessivas dos meus dias)
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cahier de notes éparses, pensées oisives, réflexions filantes, poèmes diffus, introspections d'une philosophie plus ou moins opaque de mes journées (ou + de réminiscences mélomanes, translucides, intra-sensorielles et extra-sensorielles, érogènes, schizophrènes ou obsessionnelles de mes journées)

quarta-feira, 30 de agosto de 2006

regresso à rotina

Regresso à rotina

A "Schueberfouer", mercado medieval primeiro, depois feira, tornou-se com a tradição acrescentada dos séculos um dos encontros anuais obrigatórios dos habitantes deste pequeno país. Anunciava as víndimas, marcava o fim do Verão. Do ténue Verão luxemburguês, entenda-se. Sempre demasiado efémero, fugaz, sobretudo para nós, os austrais, quer tenhamos chegado com uma nova cor na pele ou aguentado estoicamente nestas latitudes um mês sem Verão.

Como apenas o estio é desculpa para o ócio, aqui no burgo, entre a meteorologia incerta e o calendário inane, houve quem encontrasse pano para mangas, mesmo num país desertado por parte da população. Provando que hoje em dia isso de rentrée política é coisa ultrapassada, porque afinal o mundo não pára para férias, os partidos ADR e DP, da Oposição, exigiram ao Governo, em Agosto, um debate alargado e profundo sobre a viabilidade do sistema de pensões. O tema é aliás uma preocupação constante. Compreende-se, num país cuja população envelhece rapidamente, com o mito do fim do Estado Providência sempre a espreitar. O propagandeado "Estado Mínimo", que o neoliberalismo radical apregoa, em que a instituição máxima do poder deveria apenas assegurar o "serviço mínimo" da justiça e pouco mais, aparece a muitos como a solução milagrosa para os rombos constantes que as caixas da Segurança Social acusam.

É uma ameaça que não paira (por enquanto) sobre o Grão-Ducado, graças sobretudo à imigração, que tem vindo a colmatar o débil crescimento da demografia dos nacionais. Os números são eloquentes: o número de reformas passou de 80 mil, em 1990, para 120 mil, em 2005, segundo o Statec. O que, numa população com 460 mil habitantes, significa que existem três assalariados para cada reformado. No mesmo período, o número de estrangeiros passou de 113 para 177 mil, enquanto os nacionais aumentaram apenas de seis mil indíviduos (de 271 para 277 mil).

Apesar de este reforço demográfico se ficar a dever em grande parte à imigração comunitária, uma sondagem veio revelar no princípio deste mês que os luxemburgueses (depois dos alemães) são dos que mais se opõem ao futuro alargamento da UE. A posição oficial do Governo luxemburguês e do primeiro-ministro Jean-Claude Juncker sempre foi, em contrapartida, a favor de um cada vez maior alargamento da União. Apesar deste aparente desfasamento entre as duas partes, 65% da população luxemburguesa – ou seja, exactamente a mesma percentagem que se pronuncia contra o alargamento –, diz confiar nas decisões do Governo!

Poderia ser antagónico. Mas atentemos no facto de o Grão-Ducado ser um dos doze países do mundo onde as pessoas são mais felizes, pelo menos a acreditar no estudo recentemente publicado pelo psicólogo social britânico Adrian White, da Universidade de Leicester. A capital luxemburguesa é mesmo uma das três mais prósperas do globo, revela, por seu lado, um inquérito do banco UBS. A única conclusão possível é ter a lição de Voltaire sofrido uma adaptação local: tudo está bem no melhor dos mundos... enquanto o nosso jardim continuar arrumadinho e cultivado.

Com a grande feira no Glacis, a vida volta verdadeiramente à capital e ao país, as crianças sabem que o regresso às aulas é para breve e espera-se com mais ou menos ansiedade e interesse a rentrée política. Mesmo quando as novidades não parecem abundar... a não ser que seja apenas uma ilusão de óptica.

O Conselho de Governo reuniu na sexta-feira. Decidiu, entre outros pontos, a participação luxemburguesa na Força Interina das Nações Unidas no Líbano (o envio de três homens!) e a criação, para 2007, de um novo liceu em Dommeldange. Abordaram-se ainda questões como a do desemprego endémico, que voltou a aumentar, depois de tímidas descidas no primeiro semestre do ano; bem como a lei da violência doméstica – apesar de ter sido votada há três anos, os números de mulheres e crianças espancadas continuam a rondar os mesmos valores de então. Os membros do Governo voltaram de férias mas, como ainda vinham de sandálias , limitaram-se a tratar do expediente. Mostraram que fizeram os deveres, mais nada.

Assuntos como a dupla nacionalidade, que deveria ter sido apresentada ainda antes do Verão, ficam relegados para a rentrée parlamentar, no Outono. Nenhum elemento do Executivo achou por bem fazer uma referência à sugestão no mínimo curiosa (para não dizer duvidosa) do círculo de reflexão Joseph Bech (próximo do CSV e do Governo!), que considerou oportuno propor, em pleno Agosto, na ausência da maioria dos estrangeiros (mas é apenas um detalhe!), que a cidadania europeia funcionasse como alternativa à dupla nacionalidade. Como se uma pudesse substituir a outra. Como se a cidadania europeia fosse um facto político consumado e a UE um Estado próprio. Uma proposta infeliz e anacrónica que, espera-se, não atrase (ainda mais!) os futuros debates.

Quando a feira desce à cidade, até os portugueses voltam da sua migração estival para Sul. Repousados, bronzeados, sorridentes, com maresias e saudades no olhar. Trocam a praia pela roda gigante e operam com esta transmutação do lazer o regresso à rotina. Devagarinho! Seria desejável que no acto guardassem o sebastianismo tipicamente luso no bolso, aproveitassem para alargar o seu horizonte, inquirissem sobre o que se passou nesta sua outra "terrinha" durante as semanas em que estiveram fora e participassem mais nas discussões de política e sociedade que se aproximam e que também lhes dizem respeito.

(José Luís Correia, in Contacto, 30.08.06)

quinta-feira, 24 de agosto de 2006

livros lidos este Verão
- "La mémoire et le feu - Portugal: l'envers du décor de l'Euroland", Jorge Valadas. Ensaio político que se resume a apedrejar os recentes governos, da esquerda à direita, dos comunistas aos bloquistas. Ninguém escapa. Não ousa porém tocar na efígie do "el-comadante" Álvaro Cunhal. A leitura que faz da actual política e das politiquices portuguesas é, diga-se em abono da verdade, inteligente e certeira. Mas o discurso sobre a "utopia portuguesa", com que se seduz o leitor na introdução e na contracapa, e que eu debalde esperei, não acontece. Li gato por lebre.
- "Planisfério Pessoal", de Gonçalo Cadilhe. A volta ao Mundo por terra e por mar do antigo jornalista da Grande Reportagem, publicada no Expresso, entre Dezembro de 2002 e Julho de 2004.
- "O cartógrafo do Infante", de Frank G. Slaughter. Romance com um bom enredo e que prende o leitor desde as primeiras páginas e que aproveita os vazios da História para romancear alguns mitos dos Descobrimentos Portugueses. Aventura, sexo, amor, traição, histórias e História. Boy meets girl, boy gets in trouble, girl saves boy. Em paralelo, o cartógrafo veneziano André Bianco, com ligações à família dos Médicis, feito escravo por corsários árabes, navega enquanto tal até aos mares da China e Cipango (Japão), cem anos antes de qualquer europeu lá chegar (os primeiros, os portugueses, chegariam em 1540!), e entra depois ao serviço do Infante D. Henrique, ao mesmo tempo que se apaixona, numa enseada de Sagres, por Leonor Perestrelo, filha do futuro governador da Madeira. Toda e qualquer semelhança com Cristovão Colombo é, evidentemente, pura coincidência.
- "Minto até ao dizer que minto", de José Luis Peixoto. Episódio "blasé" sobre a passagem amorfa das deambulações vagas e desilusórias pós-adolescentes à vida adulta nesta primeira década do século.
- "Um homem sem pátria" de Kurt Vonnegut. O autor de origem alemã, naturalizado norte-americano, que se celebrizou com "Matadouro 5" (sobre o Holocausto), escreve aqui artigos corrosivos (já o foi mais!) e com bastante humor (já também foi melhor!). Entre memórias da sua infância (nos anos 30) e críticas à actual administração Bush, é o regresso de um autor que está a gastar os últimos cartuchos para mostrar que a sua verve ainda vive.
- "A Máquina do Arcanjo", Frederico Lourenço. É o último capítulo de um tríptico, mas pode ser lido separadamente. O amor e o sexo gays no Portugal dos anos 80. Pequenos toques de humor deliciosos.
- "Sete Noites" de Alina Reyes. Pequena história sem muito enredo, escrita noite após noite, na primeira pessoa, com sensualidade tântrica e erotismo feminino.
- "Em Paris" de Ramalho Ortigão. Relatos das impressões e dos encontros do dia-a-dia do literato português na capital francesa em 1868. As comparações do mundo parisiense com uma sociedade portuguesa burra, casmurra, analfabeta, analfabruta e empertigada são inevitáveis e de uma aflitiva actualidade.Ramalho, o irmão-gémeo de Eça.
- "Quatro Gigantes" de Ramalho Ortigão. Textos do autor sobre Camões, Garrett, Camilo Castelo Branco e Eça de Queiroz. O título, pobre de conteúdo, duvido que pertença ao autor e seja antes uma escolha publicitária e infeliz da editora. Isso nota-se aliás pelos textos escolhidos. Enquanto os ensaios sobre Camões e Camilo se revelam bastante interessantes e completos, nota-se que a parca página e meia sobre Garrett não passa de um texto recuperado de uma petição da altura para tresladar o corpo de Garrett para o Panteão Nacional; os textos sobre Eça fazem parte da correspondência privada do autor e que, não obstante o seu interesse inequívoco sobre a vida e obra de Eça, não são biográficos nem completos nem a tal pretendiam.
- "Profecias do Bandarra", de Gonçalo Anes Bandarra. As trovas do Sapateiro de Trancoso. Boa introdução que situa o autor no seu contexto social e histórico.
- "Future Perfect", Ed. Jim Heimann. Cartazes, desenhos, ilustrações de cores berrantes, artigos e capas de revista de ficção científica sobre o que os nossos contemporâneos dos anos 1940-1960 imaginaram sobre um futuro que nunca chegou a acontecer: comboios para a lua, túneis subterrâneos sob o Atlântico, aviões de passageiros de quatro andares, submarinos privados, etc.

BDs e novelas gráficas
- "Cité de Verre", com textos de Paul Auster, ilustrações de Paul Karasik e David Mazzucchelli. Excelente enredo e desenhos. Adinha-se a dificuldade que os desenhadores tiveram para imaginar as partes mais elípticas e opacas da história. Sairam-se com nota 10.
- "Catálogo de Sonhos", de José Carlos Fernandes (JCF)
- "O Depósito dos Refugos Postais", de JCF
- "Pessoas que usam bonés-com-hélice", de JCF
- "A última obra-prima de Aaron Slobodj", de JCF. Todas as histórias de JCF se desenrolam num mundo paralelo onde os habitantes até se parecem connosco mas o mundo evoluiu prolongando um não-sei-quê négligé e blasé dos anos 40 e 50, como se tivesse sido preservada a nossa ingenuidade pré-Segunda Guerra Mundial. De episódio para episódio, descobrimos uma nova personagem, uma nova cidade, um novo promenor, uma nova história. Histórias deliciosas, humanas, trágicas, delirantes, loucas, tresloucadas, mas tão verdadeiras...mesmo quando são (apenas?) pura ficção e poesia gráfica.

em leitura
- "Contos Satíricos", contos do Oeste de Mark Twain
- "Pobre e Mal Agradecido", ensaios políticos de Rui Tavares
- "Os Livros da Minha Vida", Henry Miller
- "Ninfomaníacas e Outras", Irwing Wallace
- "Os Cento e Vinte Dias de Sodoma", Marquês de Sade
- "Todos os Dias", Jorge Reis-Sá

leitura incidental

- "A noite abre os meus olhos", colectânea poética de José Tolentino Mendonça
- "O Teu Rosto", António Ramos Rosa (foto infra)
- "Mundos Paralelos", teses recentes da Física explicada em miúdos por Michio Kaku