Regresso à rotina
A "Schueberfouer", mercado medieval primeiro, depois feira, tornou-se com a tradição acrescentada dos séculos um dos encontros anuais obrigatórios dos habitantes deste pequeno país. Anunciava as víndimas, marcava o fim do Verão. Do ténue Verão luxemburguês, entenda-se. Sempre demasiado efémero, fugaz, sobretudo para nós, os austrais, quer tenhamos chegado com uma nova cor na pele ou aguentado estoicamente nestas latitudes um mês sem Verão.
Como apenas o estio é desculpa para o ócio, aqui no burgo, entre a meteorologia incerta e o calendário inane, houve quem encontrasse pano para mangas, mesmo num país desertado por parte da população. Provando que hoje em dia isso de rentrée política é coisa ultrapassada, porque afinal o mundo não pára para férias, os partidos ADR e DP, da Oposição, exigiram ao Governo, em Agosto, um debate alargado e profundo sobre a viabilidade do sistema de pensões. O tema é aliás uma preocupação constante. Compreende-se, num país cuja população envelhece rapidamente, com o mito do fim do Estado Providência sempre a espreitar. O propagandeado "Estado Mínimo", que o neoliberalismo radical apregoa, em que a instituição máxima do poder deveria apenas assegurar o "serviço mínimo" da justiça e pouco mais, aparece a muitos como a solução milagrosa para os rombos constantes que as caixas da Segurança Social acusam.
É uma ameaça que não paira (por enquanto) sobre o Grão-Ducado, graças sobretudo à imigração, que tem vindo a colmatar o débil crescimento da demografia dos nacionais. Os números são eloquentes: o número de reformas passou de 80 mil, em 1990, para 120 mil, em 2005, segundo o Statec. O que, numa população com 460 mil habitantes, significa que existem três assalariados para cada reformado. No mesmo período, o número de estrangeiros passou de 113 para 177 mil, enquanto os nacionais aumentaram apenas de seis mil indíviduos (de 271 para 277 mil).
Apesar de este reforço demográfico se ficar a dever em grande parte à imigração comunitária, uma sondagem veio revelar no princípio deste mês que os luxemburgueses (depois dos alemães) são dos que mais se opõem ao futuro alargamento da UE. A posição oficial do Governo luxemburguês e do primeiro-ministro Jean-Claude Juncker sempre foi, em contrapartida, a favor de um cada vez maior alargamento da União. Apesar deste aparente desfasamento entre as duas partes, 65% da população luxemburguesa – ou seja, exactamente a mesma percentagem que se pronuncia contra o alargamento –, diz confiar nas decisões do Governo!
Poderia ser antagónico. Mas atentemos no facto de o Grão-Ducado ser um dos doze países do mundo onde as pessoas são mais felizes, pelo menos a acreditar no estudo recentemente publicado pelo psicólogo social britânico Adrian White, da Universidade de Leicester. A capital luxemburguesa é mesmo uma das três mais prósperas do globo, revela, por seu lado, um inquérito do banco UBS. A única conclusão possível é ter a lição de Voltaire sofrido uma adaptação local: tudo está bem no melhor dos mundos... enquanto o nosso jardim continuar arrumadinho e cultivado.
Com a grande feira no Glacis, a vida volta verdadeiramente à capital e ao país, as crianças sabem que o regresso às aulas é para breve e espera-se com mais ou menos ansiedade e interesse a rentrée política. Mesmo quando as novidades não parecem abundar... a não ser que seja apenas uma ilusão de óptica.
O Conselho de Governo reuniu na sexta-feira. Decidiu, entre outros pontos, a participação luxemburguesa na Força Interina das Nações Unidas no Líbano (o envio de três homens!) e a criação, para 2007, de um novo liceu em Dommeldange. Abordaram-se ainda questões como a do desemprego endémico, que voltou a aumentar, depois de tímidas descidas no primeiro semestre do ano; bem como a lei da violência doméstica – apesar de ter sido votada há três anos, os números de mulheres e crianças espancadas continuam a rondar os mesmos valores de então. Os membros do Governo voltaram de férias mas, como ainda vinham de sandálias , limitaram-se a tratar do expediente. Mostraram que fizeram os deveres, mais nada.
Assuntos como a dupla nacionalidade, que deveria ter sido apresentada ainda antes do Verão, ficam relegados para a rentrée parlamentar, no Outono. Nenhum elemento do Executivo achou por bem fazer uma referência à sugestão no mínimo curiosa (para não dizer duvidosa) do círculo de reflexão Joseph Bech (próximo do CSV e do Governo!), que considerou oportuno propor, em pleno Agosto, na ausência da maioria dos estrangeiros (mas é apenas um detalhe!), que a cidadania europeia funcionasse como alternativa à dupla nacionalidade. Como se uma pudesse substituir a outra. Como se a cidadania europeia fosse um facto político consumado e a UE um Estado próprio. Uma proposta infeliz e anacrónica que, espera-se, não atrase (ainda mais!) os futuros debates.
Quando a feira desce à cidade, até os portugueses voltam da sua migração estival para Sul. Repousados, bronzeados, sorridentes, com maresias e saudades no olhar. Trocam a praia pela roda gigante e operam com esta transmutação do lazer o regresso à rotina. Devagarinho! Seria desejável que no acto guardassem o sebastianismo tipicamente luso no bolso, aproveitassem para alargar o seu horizonte, inquirissem sobre o que se passou nesta sua outra "terrinha" durante as semanas em que estiveram fora e participassem mais nas discussões de política e sociedade que se aproximam e que também lhes dizem respeito.
(José Luís Correia, in Contacto, 30.08.06)