Quando uma aldeia inteira apela à tradição para legitimar as práticas mais cruéis e sanguinolentas, pergunto-me afinal em que século estou?!
Esta manhã devo ter acordado na Idade Média ou numa época ainda mais recuada, em que se faziam ainda sacrifícios de animais de oferenda aos deuses. Afinal o homem evoluiu mas a sua bestialidade ficou?
É que esta manhã, fiquei de tal maneira enjoado e enojado que perdi a fome para o resto do dia, ao ler nos jornais e na televisão que a aldeia raiana de Barrancos continua a fincar o pé como um "gaiato teimoso e embirrento", contra todo o país e todas as leis se for preciso, e vai mesmo avançar, novamente, apesar das decisões dos tribunais, com mais uma Corrida de Touros de morte, durante as festas locais dedicadas a Nossa Senhora da Conceição.
Conhecendo bem tudo o que gira em torno da festa brava, por minha mãe ter durante muito tempo servido na casa de uma grande família de toureiros alentejanos, fui percebendo o orgulho alentejano, o gosto pelos cavalos, o respeito pelos touros.
Respeito, é esse o sentimento que o toureiro tem pelo touro quando o enfrenta na arena. Depende da pujança e da "raça" do touro que a sua lide seja um espectáculo ou um "flop".
Ao contrário do que muita gente pensa, na "tourada à portuguesa", o touro não é morto ao sair da praça: primeiro retiram-lhe as farpas e é de imediato tratado. Muitos touros voltam às suas ganadarias e aos seus montados, onde poderão ser escolhidos para voltarem a ser toureados; outros são guardados pois a sua estirpe e qualidades de toureio exigem que ele perpetue a sua "raça", multiplicando os novilhos.
O que está aqui em causa, nesta discussão, é a morte gratuita de um animal, para fins puramente de diversão popular. O que nos termos da nossa sociedade dita civilizada é uma aversão, enquanto contrariedade, já que agimos comos animais e não como seres civilizados.
Não estou aqui para defender a tourada à portuguesa, cuja tradição é não matar os touros. Quero é manifestar o meu repúdio à morte gratuita, imputada a um animal, para puro delírio dos homens. Também a tourada à portuguesa tem o seu grau de crueldade. Por isso, sou, hoje, contra qualquer tipo de tourada.
Mas, a haver tourada, a portuguesa ainda pode ser considerada a mais equitável e digna, em relação à espanhola. Na portuguesa, há o toureiro que espicaça o touro de forma a instigá-lo a mostrar a sua fúria e "raça", e há também a figura do forcado que enfrenta o touro de mãos nuas, face a face. Aqui a luta sempre é mais equitável.
Já na tourada à espanhola o touro é picado pelos "picadores" de forma a ficar enfraquecido para que a tarefa do "matador" seja facilitada. Também aqui, o homem enfrenta o touro face a face, mas acaba por matá-lo.
É a superioridade do homem sobre o animal. Não haverá outras formas menos cruéis de exortar a nossa condição de seres "supostamente" superiores?
Mais do que estas considerações todas, e sejamos contra ou a favor, há uma lei que fica por cumprir e à qual, um grupo de pessoas, quer fazer ouvidos moucos. A lei é para todos, e não há excepções, é o que nos ensinam.
A tradição não pode ser desculpa para excepções, e para que se continuem a perpetuar acções como estas, que em nada dignificam o ser humano e, neste caso preciso, Portugal e os portugueses. E se algum barranquenho argumentar que mais valia ser espanhol, eu respondo: com portugueses assim, quem precisa de espanhóis?
José Luís Correia
(in jornal CONTACTO, 03/09/1999)
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