sebenta de anotações esparsas, pensamentos ociosos, reflexões cadentes, poemas difusos, introspecções de uma filosofia mais ou menos opaca dos meus dias (ou + reminiscências melómanas, translúcidas, intra e extra-sensoriais, erógenas, esquizofrénicas ou obsessivas dos meus dias)
-
cahier de notes éparses, pensées oisives, réflexions filantes, poèmes diffus, introspections d'une philosophie plus ou moins opaque de mes journées (ou + de réminiscences mélomanes, translucides, intra-sensorielles et extra-sensorielles, érogènes, schizophrènes ou obsessionnelles de mes journées)

quarta-feira, 8 de junho de 2005

Que Europa queremos afinal?

Mas o que está afinal a levar os europeus a recusarem uma Constituição com a qual todos deveriam identificar-se?

Uma Constituição que pretende, sobretudo, dotar a União Europeia de uma voz política (política exterior comum), através da criação de cargos como o de Presidente ou o de ministro dos Negócios Estrangeiros da UE.

Tememos uma "ditadura europeia" como a viúva de Mitterrand, ou como o profetiza João Aguiar no seu romance de antecipação, "O Jardim das Delícias"?

A UE é o único espaço político de toda a Geografia e de toda a História a ter sido criado pelo consentimento mútuo dos povos e não pela força. E não há razões para que mude.

Os Estados Unidos perceberam que afinal tinham de contar com a UE quando o sempiterno e omnipotente dólar fraquejou face ao euro. A UE conseguia assim demonstrar que tinha algo a dizer no palco da economia mundial, em constante e rápida evolução. Também a China está a perceber que, economicamente, não pode impôr as suas regras à UE. Porque, nesta matéria, a UE consegue lutar com uma só e mesma voz.

Mas o Mundo já descortinou a fraqueza da UE: a sua divisão a nível político, a exemplo do que sucedeu recentemente na questão da Guerra do Iraque. Porque a UE não soube reagir em uníssono. Cada estado-membro preferiu adoptar a posição mais conveniente relativamente às relações que já teve, mantém ou pretende no futuro desenvolver com os EUA.

Se, muito rapidamente, a UE não souber munir-se de uma Constituição, não conseguir falar a uma só voz, não será tida nem achada nas decisões políticas, mas também económicas (umas dependendo das outras) do século XXI nascente.

Se conseguimos pôr-nos de acordo em matéria económica, porque não política? Ou estes "não" foram apenas ondas de contestação aos governos nacionais? É legítimo fazê-lo em referendos onde a construção europeia está em jogo?

É, porque os cidadãos sentiram que era a única maneira dos governantes os ouvirem, quando há tanto tempo se queixam de uma Europa que lhes parece cada vez mais abstracta, sem se preocupar com os seus problemas reais.

Estes dois „Não“ são sobretudo a prova da incapacidade dos governantes e dirigentes em explicar às populações o que está realmente em causa.

Os políticos falam-lhes do amanhã, de uma Europa que, face às potências económicas mundiais vigentes ou emergentes (EUA, China e outros países asiáticos), só conseguirá desenvolver-se, alargando-se, como o fez a Leste e como está a pensar fazê-lo para a Turquia – e, quem sabe até, um dia, para a imensidão da Rússia ou do Maghreb? E porque não, se estiver garantida a democracia e o respeito dos direitos humanos nesses países?

Os objectivos da UE sempre foram e serão, com esta ou outra denominação, a expansão de um espaço de paz e de estabilidade. Não se trata apenas de uma questão de identificação cultural – ser mais ou menos europeu –, trata-se de sobrevivência, num futuro comum.

Mas os trabalhadores não querem saber de amanhãs improváveis. Querem que se acabe hoje com o desemprego que os assombra, com os benefícios sociais ameaçados, com a precaridade que espreita. Temem as deslocalizações e a invasão de imigrantes de Leste que são pagos com metade dos salários. O medo que franceses e outros tinham do pedreiro português em 1986 reaparece em 2005, transfigurado em pavor do canalizador polaco. E é um medo compreensível! Mas são medos perigosos porque conduzem ao isolacionismo e ao radicalismo.

Mas alguém lhes explica que, se as empresas se deslocarem para Leste, é preferível a falirem se não houver alargamento? Alguém lhes diz que a população europeia está velha e que em 2013 haverá mais gente na reforma do que a trabalhar? Que para pagarmos esses reformados o Estado terá de reter dois terços dos salários da população activa ou simplesmente acabar com a Segurança Social estatal. Ou que teremos provavelmente de "importar" mão-de-obra chinesa ou até – será assim tão inacreditável – emigrar para a Ásia, única região ainda em franca expansão económica? Alguém lembra aos portugueses que, com a actual crise, se Portugal não estivesse na zona euro, estaria a pedir ao FMI para desvalorizar dramaticamente o escudo?

Há que explicar aos cidadãos europeus que, mesmo numa época de crise, somos a zona que garante mais direitos sociais no mundo. Que palavras como "liberal" e "concorrência" podem aparecer mais de 25 vezes no texto da Constituição, mas que a palavra "social" aparece quatro vezes mais.

A UE não é perfeita, mas foi o que de melhor se encontrou até agora. Tem garantido a paz e a estabilidade política e económica nos nossos países. Porque o seu objectivo tem sido e continua a ser: o nosso futuro comum.

Há que saber explicar às populações o que se pretende com a UE, em que sentido devemos evoluir e porquê. Mas também é necessário escutar o que os povos têm a dizer e o que querem da Europa . Um diálogo. Não monólogos e atitudes autistas de eurocratas!

A Constituição Europeia é uma necessidade, nesta ou noutra forma. Reveja e corrija-se. Chega de noções técnicas, fórmulas complicadas e de decidir projectos que os europeus não entendem. É necessário que todos sintamos que a Europa não é apenas Bruxelas. A Europa somos todos nós.

José Luís Correia, in Contacto, 08.06.2005

Sem comentários: