sebenta de anotações esparsas, pensamentos ociosos, reflexões cadentes, poemas difusos, introspecções de uma filosofia mais ou menos opaca dos meus dias (ou + reminiscências melómanas, translúcidas, intra e extra-sensoriais, erógenas, esquizofrénicas ou obsessivas dos meus dias)
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cahier de notes éparses, pensées oisives, réflexions filantes, poèmes diffus, introspections d'une philosophie plus ou moins opaque de mes journées (ou + de réminiscences mélomanes, translucides, intra-sensorielles et extra-sensorielles, érogènes, schizophrènes ou obsessionnelles de mes journées)

quinta-feira, 18 de maio de 2017

EDITORIAL: A vitória do anti-herói

Os portugueses continuam a precisar de heróis. No sábado, o cosmos conspirou para que uma sequência de acontecimentos felizes prometessem à pátria lusa um novo 13 de maio, uma epifania, um novo salvador. Portugal, país de fé.

E o universo parece ter-se dobrado à nossa vontade e concedeu-nos alguns instantes felizes e inesquecíveis no tempo. O jardim à beira-mar plantado, que tantas vezes acha que é mero quintal das traseiras, que se sente esquecido, olvidado, foi central. Pelo menos, durante 24 horas.

O Papa mostrou que Fátima é um dos maiores santuários católicos e isto perante o mundo e mais de um milhão de peregrinos. Para muitos, corrigiu uma injustiça: canonizou os pastorinhos Francisco e Jacinta, legitimando-os assim perante a Igreja e o mundo católico. Ao mesmo tempo, legitimou as aparições da Cova da Iria de 1917, que continuam a não obter consenso no próprio Vaticano.

Nessa mesma noite, os olhos e os corações lusos viraram-se para Kiev e desejaram e acreditaram num milagre completamente diferente. Há mais de meio século – 53 anos! – que os melhores compositores e músicos do "país dos poetas" concorrem ao Festival Eurovisão da Canção. Em vão. Nem ao top 5 chegaram. Outros países recém-chegados – arrivistas, dizem os nossos paladinos nacionais, invejosos que o rock ucraniano seja preferido à canção lusa –, “vendem-se” à língua inglesa e granjeiam o troféu. É a Letónia, a Turquia, o Azerbaijão, até a chauvinista França, que não vence desde 1977 (e nesse venceu graças à franco-portuguesa Marie Myriam), se faz agora representar no idioma de Shakespeare.

A imprensa e a elite portuguesas foram-se assim desinteressando do festival, por onde passaram nomes como France Gall, Julio Iglesias, Olivia Newton-John, Abba, Céline Dion ou Lara Fabian, mas que por ser um palco padastro passou a ser kitsch, piroso, inomável. A verdade é que a profusão de lantejoulas e o europop simplório que por ali pululam ainda hoje não ajudam a retirar-lhe essa fama.

Portugal manteve-se orgulhosamente só e fiel a cantar na sua língua. E eis que surge um novo bardo, primeiro troçado, depois encorajado, finalmente coroado. Vestiram-lhe as vestes sebastianistas, visivelmente demasiado largas para aqueles ombros frágeis. O nome parecia predestinado para salvar a honra lusa e até, quiçá, cumprir o Quinto Império. Quanta responsabilidade!

A verdade é que nem Portugal nem o Eurofestival precisam de heróis, apenas de simplicidade, de música genuína, de canções sem refrões bacocos, que isso é o suficiente para vencer e convencer até as plateias mais desvirtuadas pela indústria musical, que pensa saber o que o público gosta.

Talvez a Eurovisão mude de paradigma, e talvez agora as rádios portuguesas abram o espartilho do seu airplay a músicos como Salvador. Não precisamos de heróis, apenas de genuinidade. Foi essa a lição que Salvador nos deu.

A completar a coroa de glória, mas apenas para quem é benfiquista, o clube da Luz festejou o “tetra” e o 36° título nacional com uma megafesta no Marquês, onde a canção do Salvador também foi entoada.

José Luís Correia, 17/05/2017
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