sebenta de anotações esparsas, pensamentos ociosos, reflexões cadentes, poemas difusos, introspecções de uma filosofia mais ou menos opaca dos meus dias (ou + reminiscências melómanas, translúcidas, intra e extra-sensoriais, erógenas, esquizofrénicas ou obsessivas dos meus dias)
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cahier de notes éparses, pensées oisives, réflexions filantes, poèmes diffus, introspections d'une philosophie plus ou moins opaque de mes journées (ou + de réminiscences mélomanes, translucides, intra-sensorielles et extra-sensorielles, érogènes, schizophrènes ou obsessionnelles de mes journées)

quinta-feira, 6 de março de 2014

Putin que o pariu

Uma guerra entre dois estados europeus em pleno século XXI só podia ser parida por um filho da Put(in), um ex-expiãozeco com azia soviética, que depois de se destacar como um medíocre agente secreto, foi relegado a mero funcionário diligente do KGB, e que hoje aspira – bolorento, paranóico e saudosista –, a restabelecer a antiga glória e grandeza da URSS.

Ao recorrer à escalada militar na Crimeia, enviando milhares de soldados russos para a Ucrânia, Vladimir Putin não só violou a integridade territorial de um país europeu, como prova definitivamente que nunca digeriu a queda do muro de Berlim e o consequente colapso da União Soviética, dois acontecimentos históricos que trouxeram mais estabilidade à Europa.

É o que todos nós acreditamos. Putin não! Mas será que ao acenar com a bandeira vermelha de uma guerra na Europa, que acende em nós as piores memórias da nossa história recente, Putin não estará a fazer bluff?

Quando algo acontece na actualidade e cujos contornos ainda permanecem indefinidos, quando os analistas políticos ainda não decifraram claramente as motivações dos quem e dos porquês, por deformação profissional coloco-me sempre a mesma questão: isto beneficia quem?

A resposta a que cheguei, no caso de uma eventual guerra Rússia-Ucrânia, é que não beneficia ninguém: nem a Rússia, que se quer impor como um parceiro sério no xadrez económico e político internacional; nem os EUA, a braços com uma crise económica interna e que não têm interesse em embarcar numa nova guerra, que os seus cidadãos nunca apoiariam; nem a UE, que tem tudo a perder com um conflito armado no seu seio; e muito menos a Ucrânia, que não quer ser palco de um teatro de guerra sangrento.

Mas, destes todos, talvez a Rússia seja o país que realmente mais tem a perder. O valor do rublo nunca esteve tão baixo e desde que a crise com a Ucrânia piorou, ainda se deteriorou mais. Ao lançar-se numa guerra com a Ucrânia, a Rússia arrisca-se a perder o seu lugar no G8, pelo qual tanto lutou nos últimos anos. Perderia também os seus melhores clientes do mercado do gás, cujas condutas atravessam a Ucrânia para chegar à UE. E veria parte da sua economia bloqueada, com as contas bancárias dos seus dirigentes e oligarcas congeladas na UE. Mesmo se graças a este braço-de-ferro com Kiev, Putin nunca esteve melhor nas sondagens domésticas, ao intervir na Crimeia perderia toda a credibilidade internacional, ele que tanto tem defendido a não-ingerência na guerra civil síria.

A Península da Crimeia (dez vezes maior do que o Luxemburgo), no sul da Ucrânia, é para a Rússia um ponto estratégico. Militar primeiro, porque é lá que está estacionada a frota russa do mar Negro, no que é também o seu único acesso ao Mediterrâneo. Político e cultural também, porque os russos são a nacionalidade dominante da região e porque, historicamente, a Crimeia sempre foi russa. A região foi doada por Khrushchev à Ucrânia em 1954. Na altura, o gesto foi simbólico, já que a Ucrânia e a Crimeia faziam parte da URSS.

Mas revelou-se um presente envenenado quando, em 1991, os ucranianos se tornaram independentes, e a Crimeia lutou para ser uma região autónoma, não sem suscitar tensões com Kiev. Para continuar a ter ali a sua frota, Moscovo concordou em pagar uma renda anual à Ucrânia, num acordo benéfico para ambos os países e que expira em 2042. Mas sempre que o Governo de Kiev adopta uma preferência pró-UE (esta não é a primeira vez!), em detrimento da aproximação ancestral com a Rússia, as tensões agudizam-se.

Para muitos ucranianos, destituir Ianukovich significou livrar-se de um ditador que servia os interesses de Moscovo e que nem ucraniano falava. Para os pró-russos, o novo regime de Kiev é fascista, aliena-os do estatuto de protectorado da Mãe-Rússia de que gozavam, e a destituição de Ianukovich foi um golpe de Estado, incentivado pela UE e pelos EUA, o que não está longe da verdade.

Como em tudo, aqui há muitas áreas cinzentas e sobretudo muitos interesses económicos. Moscovo teme que os seus interesses sejam prejudicados na Ucrânia, com quem tem acordos económicos, como o do gás russo exportado para a UE. Se a Ucrânia pedir a adesão à UE, Putin terá de desistir da ambicionada "União Euroasiática" – bloco económico e político que Putin almeja constituir face à UE, da qual fazem já parte o Cazaquistão e a Bielorússia (ambos governados por ditadores pró-russos) –, e que sem Kiev não faz sentido.

Tudo isto leva a pensar que Putin está a fazer bluff. Nos últimos dias tem dado uma no cravo, outra na ferradura. No sábado, enviou mais tropas para a Crimeia, no domingo aceitou a mediação de Angela Merkel para dialogar com Kiev, na segunda-feira lançou um ultimato à Ucrânia, na terça mandou os seus soldados na Crimeia regressar às casernas. Quo vadis?

A ser bluff, este serve como mera demonstração de força, que visa provar toda a magnanimidade de Putin quando este propuser outras opções à guerra. Moscovo deverá então propor mais vantagens económicas e políticas à Ucrânia para que esta não se aproxime da UE. Putin pode ainda apresentar-se como salvador da Crimeia, exigindo a independência da região, o que a Ucrânia tem todo em interesse em aceitar, pouco perdendo com essa opção. Putin tem de mostrar que a Rússia é um gigante que não se deixa demover pelos seus vizinhos, nem pela UE, nem pelos EUA, nem por ninguém.

O povo amordaçado da Bielorússia está de olhos postos na crise do vizinho ucraniano. E o ditador pró-russo que dirige o país também. Lukashenko não quer ser outro Ianukovich. Putin tem de ter tudo isto em consideração e não mostrar parte fraca ao que considera uma provocação da Ucrânia. O seu pior pesadelo seria que o afastamento da Ucrânia da órbita de Moscovo contagiasse outras ex-repúblicas soviéticas que continuam, de bom ou mau grado, fiéis servos da Rússia. É um jogo perigoso o de Putin. Perigoso para a Rússia e para todos nós na Europa, afastada que pensávamos a possibilidade de uma nova guerra no nosso continente, onde a UE tem sido o garante de uma paz duradoura entre Estados, outrora inimigos ancestrais durante séculos.

Esperemos que esta crise se resolva e se torne apenas uma linha num parágrafo menor da História da Europa. Esperemos que a Rússia perceba que o reino oligarca de Putin, que dura desde 1999, apenas favorece as elites e não os cidadãos, e o povo russo entenda o seu desígnio europeu, dentro da UE, ou de uma UE diferente, alargada, maior, que poderá até ter uma denominação diferente – porque não "União Euroasiática", estendendo-se de Lisboa a Vladivostok? –, sem uma Rússia dominadora, mas parceira.

Esperemos que o povo e os dirigentes da Rússia futura entendam que é a bem que se constitui uma união e não pela força. Todos os que o tentaram pela força fracassaram, desde Alexandre Magno a Hitler. Há que aprender com a História, para não repetir os erros do passado. Os erros pagam-se caro e custam muitas vidas.

José Luís Correia
(in Jornal CONTACTO, 05/03/2014)

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