Os meus pais
Ele falava francês há bem mais tempo do que ela,
mas foi ela que me ensinou o pouco que conhecia
antes de eu ir pra escola, um dia.
Mas uma coisa os dois fizeram questão,
que eu e o meu irmão
soubéssemos, bem antes dos dez,
a falar e a escrever, pelo menos, português.
Ela não me falou dos livros que leu
porque nunca tinha lido nenhum.
Cresci numa casa onde os primeiros livros foram os meus.
Ela dizia-me: « Sou uma ‘Alfabeta’,
mas tu, tens de comer o Nestum,
aprender a ler e a escrever,
é isso que tens de fazer,
para arranjares mais tarde um bom emprego ».
Ele? Ele sabia ler bem, mas nem em segredo
me falou do que tinha lido
e do que recitava de ouvido.
Ela gostava de me ver a mexer nos legos,
nos carrinhos e nos livros,
mas se eu saísse, sem pedir, para jogar à bola com os colegas
levava logo com castigos.
Ela quis mostrar-me como se cozinhava, costurava, faxinava
e lavava a loiça, o que até é uma coisa bem prática,
mas só obrigado eu participava.
Ele era bom na matemática
mas eu não percebia nada.
Ele quis transmitir-me o nome das ferramentas de carpinteiro,
que era o ofício que tinha aprendido,
mas eu não me interessava pela arte de marceneiro
e ele ficava triste e aborrecido.
Para ser totalmente sincero, houve uma coisa que ele me ensinou:
a História de Portugal e isso ficou.
Explicavam-me muitas vezes que não havia dinheiro
para comprar todos os brinquedos que eu queria,
eu parava o berreiro
e fazia que percebia.
Ela dizia-me para eu parar de ser chato,
para comer a sopa toda do prato
porque havia meninos pobres que queriam e não tinham.
Ele? Ele não dizia nada, dava-me um tabefe e tefe-tefe
eu metia a mistela à boca, mesmo já fria,
continha as lágrimas e planeava uma táctica
para ser presidente um dia
e plantar espinafres em toda a África.
Ela contou-me como se tinham conhecido em Paris,
como se tinham casado,
mas não como se tinham amado.
Disse-me que uma vez se tinha apaixonado,
mas não me disse se tinha sido por ele.
Não li nada sobre Sócrates, Platão ou Filosofia
antes de chegar aos bancos da escola.
Eles não me falaram de Napoleão, de Rousseau,
nem de Voltaire ou Waterloo,
excepto do dos Abba, que era uma canção muito boa.
Não me falaram de Camilo, de Eça, de Antero ou de Pessoa
mas ele conhecia algumas rimas do Aleixo
e d’« Este livro que vos deixo ».
Disse-me também que se lembrou da Cartilha de João de Deus
enquanto atravessava a pé os Pirinéus.
Sem saber que não era o mesmo João, ela contava-me mais,
que tinha sido um santo, que nasceu na terra dela e criou os hospitais.
Eu perguntava mais, mas ele lembrava-se pouco de Maio de 68,
só que os jovens bloquearam as ruas todas uma noite
e não o deixaram ir trabalhar.
Não me disseram que era importante votar,
mas eu fui, e eles acharam bem.
E começaram a votar também.
Conheciam muitas histórias que falavam da PIDE e da ditadura
mas nada sobre como fugir aos impostos.
No tempo deles não havia Coca-Cola, só bebiam Pirolito e Sumol.
Lembravam-se da censura,
de passar fome, do trabalho de sol a sol,
ela, sob a chuva, nas herdades,
ele, no mar, debaixo de tempestades.
Ele não foi à tropa, mas ela foi madrinha de guerra.
Ele dizia-se comunista mesmo quando já não estava na berra,
mas não sabia quem fora Lenine nem o tsar.
Ela? Ela não falava de política, só não gostava do Salazar.
Nunca foram ao Louvre, mas viam muitos filmes franceses,
dos que nunca tinham passado nem em Montemor nem em Faro.
Diziam que o de Gaulle era um bom presidente. E os gauleses ?
Deviam ser apenas cigarros! Aí, ela interrompia, e dizia-me que a droga
era perigosa, e ele acrescentava « E o tabaco muito caro ».
Ele contou-me do mundo antes da televisão:
quando era jovem era, às vezes, folgazão,
ao fim-de-semana ia ao baile
ou ao cinema nas salas da sociedade.
Ele gostava de ver cobóis, ela os filmes do Calvário e da Madalena,
não tinham discos nem cassetes, mas conheciam a cantilena
dos ranchos, das modas, do ié-ié e até dos Beatles.
Não me disseram como fazer com as raparigas:
ele disse-me apenas para ter cuidado com o dinheiro
e ela para não as fazer sofrer e não ser um pantomineiro.
Levei uns açoites, umas estaladas
e umas valentes bofetadas,
mas sei que fui amado, com certeza, muito.
Ela dizia-o com beijos, abraços e mimos.
Ele? Ele não o mostrava, não sabia como mostrar.
Não havia nada que eu devesse ter feito,
excepto, talvez, a Universidade.
Ela queria que eu fosse bancário ou professor,
ele apenas que eu ganhasse o meu dinheiro.
Não havia nada que eu não devesse ter sido,
excepto, talvez, jornalista ou escritor.
Não me disseram nada sobre os novos ricos
nem sobre os esquerdistas, os anárquicos,
os socialistas, os nacionalistas. Não eram dessa rês.
Eu não era filho da esquerda nem da direita,
era filho dos meus pais, do meu país e de 1973.
Falávamos pouco sobre religião, mas muito sobre fé
que, disse-me ela, é sempre uma opção,
mas logo a seguir obrigou-me a fazer a Primeira Comunhão.
Não me falaram dos árabes nem de Maomé,
não me falaram dos chineses (ainda não havia chineses!),
mas dos belgas, dos alemães e dos luxemburgueses.
« Nós somos católicos », incutiram-me,
mas não souberam explicar-me
o que nos diferenciava dos judeus,
e disseram-me que todos, até os negros e os ciganos,
são filhos de deus.
Deram-me um certo modelo moral,
uma certa força vital
– ou melhor –, a força vital certa,
um certo sentido da vida, uma educação normal,
uma mente aberta.
Os meus pais.
JLC 20052012
(inspirado livremente da canção « France Culture », de Arnaud Fleurent-Didier, do álbum « La reproduction », 2010)
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