Biblioteca Nacional do Luxemburgo, Sala dos Periódicos, 19.11.2009, 14h45
Duas cabeças grisalhas inclinadas sobre os jornais do dia nem dão pelo esplendor desta sala em abóboda nas traseiras do que é hoje a Biblioteca Nacional do Luxemburgo, mas que começou por ser há quase quatro séculos um colégio jesuíta. Querem ler o seu jornalinho sossegados, longe dos barulhos dos cafés e do frio luxemburguês que assola nesta época do ano os bancos dos jardins.
O silêncio é sepulcral. E terapêutico.
Pelas quatro amplas janelas em arco avista-se o pátio interior do edifício, o que devia ter sido outrora o antigo claustro. De onde chegam agora ruídos ensurdecedores de um martelo pneumático, apenas filtrado pela vidraça dupla. Mal este se cala, é um balde de pedras que cai do alto do andaime com grande estrondo nas lajes de pedra. Um trabalhador solta um "foda-se!" O outro responde-lhe lá para cima: "Caralho!"
Os velhos, absortos, não despregam os olhos das páginas dos jornais. Mas bufam.
Leio um artigo numa recente edição do Land sobre a imigração portuguesa. São já mais de 80 mil, escreve a Josée Hansen. Gosto do seu "golpe de lápis" (coup de crayon). Devem rondar os 85 a 90 mil, isso sim. Mas o Statec está sempre aquém da realidade, até porque muitos portugueses antes de se registarem como residentes moram em casa de familiares, amigos ou num quarto alugado de uma pensão e são assim, durante muito tempo, difíceis de recensear.
Se acrescentarmos a esses 85 a 90 mil mais 8 mil cabo-verdianos (embora oficialmente existem cerca de 5 mil, porque muitos estão ilegais e outros têm nacionalidade portuguesa ou luxemburguesa), cerca de 5 mil brasileiros (oficiosamente e segundo o meu conhecimento empírico do país), 300 guineenses e mais uma centena de outros lusófonos provenientes de países como Moçambique, Angola e São Tomé e Príncipe, - então ultrapassamos facilmente os 100 mil luso-falantes no Luxemburgo.
A estes devem ser ainda acrescentados entre 5 a 7 mil luxemburgueses de origem portuguesa e cabo-verdiana que optaram pela nacionalidade luxemburguesa desde os anos 80, extrapolação que faço a partir dos últimos números de naturalizações referenciados no site do Ministério da Justiça luxemburguês (981 naturalizações este ano e cerca de 4 mil nos últimos 14 anos, segundo dados avançados esta semana pelo Contacto).
Ou seja, há bem mais de 100 mil pessoas a falarem a língua portuguesa neste país, o que representa cerca de um quinto da população total. Ou melhor, uma pessoa sobre cinco que cruzamos na rua tem boas probabilidades de falar português. Quem conhece o país sabe que isto não está longe da realidade.
A comunidade portuguesa vai assentando no país como o pó nestes livros. Poisam leve, levemente. Poucos conseguem realmente mover os pesados volumes centímetros que seja.
Há muito arrumados e bem ordenados em prateleiras devidamente etiquetadas, estes reivindicam a sua posição imperiosa às recém-chegadas partículas ridículas, cerram fileiras, encostam-se ainda mais uns aos outros, muito peremptórios, repletos de verdades de outros séculos.
Com o passar dos anos alguns grãos de pó confundem-se com as capas desses livros, interessados em parecerem-se o mais possível com o que o título anuncia; outros impregnam-se neles, atravessam as lombadas e mudam-nos para sempre quase sem dar por isso, enriquecendo-os com o valor acrescentando de alguma parca sabedoria que cada grão de pó adquiriu ao longo da sua viagem pelos séculos; outros ainda sonham em ser celulose, papel, cartolina; e há finalmente os que sabem que vão abrir novos capítulos, tornar-se histórias à parte inteira.
Mas toda esta é uma (r)evolução lenta que demorará várias gerações. Porque há neste pó lusitano - que já se espalhou pelo mundo e que continua chegando há mais de quatro décadas a est'outras Colunas de Hércules - muitos grãos dóceis e tranquilos, poucos insurrectos, alguns ambiciosos, outros menos, mas em quase todos a vontade de evitar levantar poeira. E nem falar em correntes de ar. Um sopro de brisa demasiado forte podia desfazer os velhos livros corroídos, as vetustas prateleiras de madeira carunchosa, e todo o edifício vinha abaixo e lá se ia a glória desta grandiosa biblioteca.
Mas há neste pó luso mais metafísica do que na teoria de Lavoisier. E assim, com o vagar de quem sabe que os horizontes são sempre verticais, o pó trabalha para ser biblioteca. Nem que para isso tenha que regressar à terra, ser raiz e seiva e árvore e pasta de papel novamente, ser marcada com outros carácteres de imprensa e línguas novas, para se transformar finalmente em novas bibliotecas e futuros mais promissores.
domingo, 29 de novembro de 2009
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