As razões do abismo
Os braços, sem medo, simulando o voo próximo,
Em bicos de pés, fingindo um equilíbrio que já não sei,
Todo o meu corpo balança à beira de um precipício que não procurei…
Considerando se devo ou não jogar-me
Considerando e calculando o tempo que demorará a queda de um corpo como o meu num buraco como estes
Considerando que depois de encontrar a solução da equação, pela prova dos nove, o resultado já não interessará mais
Considerando como será a sensação estranha do ar entrando-me àquela velocidade pelas narinas
Considerando se hei-de ou não fechar os olhos, durante a viagem
Considerando se hei-de ou não descalçar os sapatos, no degrau derradeiro
Considerando que posição majestosa adoptar no sublime mergulho para a eternidade
Considerando, medicalmente, se o meu coração aguentará a pressão da alta dose de adrenalina e de stress que me correrá pelas veias arrepiadas
Considerando, cientificamente, se o meu cérebro se extinguirá ao adivinhar o seu extermínio
Considerando se estarei lúcido no instante antes do impacto
Considerando, pseudo-intelectualmente, no que pensarei no último segundo
Considerando, psico-freudiamente, no que me atravessará o espírito nesse momento final
Considerando o aspecto pouco agradável que terá o meu monte de carne desfeita lá em baixo
Considerando que, pelo menos, os abutres apreciarão
Considerando que, pelo menos assim, servi para alguma coisa
Considerando que já não faço falta cá em cima
Considerando que nunca fiz falta
Considerando que fui um erro da Natureza
Considerando que só assim posso emendar o que Deus errou
Considerando que só assim me salvo de tudo isto
Considerando que só assim escapo ao meu destino
Considerando que só este será um acto que eu terei verdadeiramente decidido
Considerando que está na altura de ser eu a tomar este tipo de decisões, mesmo se é a última
Considerando que, com a minha partida, não se perderá grande coisa
Considerando que ninguém perderá grande coisa
Considerando que até podem, momentaneamente, sentir a minha falta
Considerando que isso depressa lhes passará, ao recordarem o meu mau génio
Considerando que não sou nem nunca fui indispensável a ninguém
Considerando que até o Ozono e a Floresta Amazónica ganharão em eu partir
Considerando que toda a gente passará melhor sem mim
Considerando que o Universo é perfeitamente viável sem mim
Considerando que até o Futuro, - não o meu –, será mais promissor assim
Considerando que só chateio, entristeço, estorvo, atrapalho, empato-fodas
Considerando que, assim, até eu próprio, já não terei de me aturar mais
Considerando que, assim, já não precisarei fingir
Considerando que, assim, já não poderei sentir
Considerando que, assim, já não poderei me dar
Considerando que, assim, já não me deixarei apaixonar
Considerando que, assim, já não poderei desiludir-me
Considerando que, assim, já não não poderão atingir-me
Considerando que, assim, já não sofrerei
Considerando que, assim, já não chorarei
Considerando que tudo continuará, no melhor dos Mundos, sem mim
Considerando, finalmente, que vim apenas para partir assim.
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Recordando um poema de 2002. As coisas, hoje, felizmente mudaram.
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