127 portugueses sem-abrigo no Luxemburgo,
que sobrevivem com quase nada
que sobrevivem com quase nada
Pedro, Sónia e Humberto são alguns dos 127 portugueses sem-abrigo ou a viver em situação precária no Luxemburgo. Sobrevivem com garra, coragem e o apoio de instituições de ajuda aos sem-abrigo. O CONTACTO foi ao seu encontro.
Pedro (*) tem 31 anos. É recém-chegado ao país e à "rua". O seu rabo de cavalo debaixo do gorro amarelo e a barba de três dias encaixam na imagem preconcebida que temos das pessoas que vivem na rua. Ideias preconceituosas que frequentemente estalam como verniz ao primeiro contacto que temos com essas pessoas, seres humanos como nós. É o que acontece quando metemos conversa com o Pedro. Tem um jeito educado, palavras rebuscadas e exprime-se num português correcto. Emigrou há três anos de Santa Comba Dão para o Luxemburgo, com a promessa de um emprego no sector industrial da carne. Mas passado pouco tempo foi despedido.
"Desossava porcos, era um trabalho bem pago, mas difícil. Depois fiquei no desemprego e com tão pouco tempo de trabalho no Luxemburgo, não tive direito ao fundo de desemprego nem ao Rendimento Mínimo Garantido (RMG). Depressa fiquei sem local onde morar", conta ao CONTACTO. Por isso, tem vivido na rua e no centro para sem-abrigo "Abrigado", em Bonnevoie, onde disse que tem recebido "muito apoio".
"Não quero voltar a Portugal, pelo menos, por enquanto. Quero reencaminhar a minha vida por aqui", afirma. Pedro garante que "nunca" enveredou pela droga ou pelo álcool, mas admite que "é verdade que é fácil cair nesses vícios quando se vive na rua".
"É o caminho mais fácil para esquecermos o rumo que a nossa vida tomou. Mas nunca digo que estou mal e hei-de fazer tudo para sair desta situação", garante com garra e coragem no olhar.
De acordo com números da associação luxemburguesa de apoio aos sem-abrigo "Stëmm vun der Strooss" ("A Voz da Rua"), há cerca de um milhar de pessoas sem-abrigo no Luxemburgo, das quais 12,65 % são portugueses (ver artigo infra).
Foi precisamente nas instalações da associação em Bonnevoie que nos encontrámos com alguns sem-abrigo portugueses.
A associação tem uma portuguesa a trabalhar como empregada de limpeza. Maria (*) tem 42 anos, é natural de Mortágua e chegou ao Luxemburgo em 1970. Não gosta de falar dos caminhos que a vida lhe trocou e que a levaram até à "Stëmm". Não tem filhos nem é casada. Com alguma vergonha e timidez conta que chegou ali "simplesmente para combater a solidão". Recebe o RMG – "cerca de mil euros – mais 300 da 'Stëmm'", o que dá menos do que ordenado mínimo luxemburguês, que ronda os 1.503,42 euros mensais para pessoas não qualificadas e os 1.804 para as qualificadas.
Um dos voluntários que ali colabora gosta de ser chamado "Angolano". Tem 44 anos e trabalha no bar da associação desde a Primavera. É electricista de formação e conta orgulhoso ao CONTACTO que em Janeiro vai assinar contrato para exercer a sua profissão.
"Cheguei ao Luxemburgo em 1986, trabalhei na hotelaria, depois como electricista, e também tive alguns empregos 'a negro'. Passei por situações difíceis, mas nunca quis pedir o RMG. Tenho dois filhos, de 18 e 15 anos, que vivem com os meus pais, em Braga. Enquanto tiver forças, hei-de lutar", garante, mostrando que não baixa os braços apesar dos reversos da vida.
Sónia (*) tem 28 anos e a família é originária de Portimão. Está no Luxemburgo desde muito nova, fala por isso perfeitamente a língua do país. Mora sozinha num pequeno estúdio com o filho. Mãe solteira, viu-se na rua com uma criança nos braços mas mostra-se parca em palavras sobre esses tempos difíceis que viveu e que lhe deixaram marcas, por exemplo, no olhar, que é sempre bonito, mas triste, mesmo quando sorri. Na "Stëmm" faz serviço de voluntariado em regime de reinserção profissional. Entre as tarefas que ali desempenha, a que mais a satisfaz é o trabalho na Redacção da revista da associação.
Humberto (*), de 42 anos e 38 de Luxemburgo, é natural de Lisboa, também tem a nacionalidade luxemburguesa e foi aqui que viveu quase toda a sua vida. Tem dois filhos de 17 e 15 anos, que vivem com a ex-mulher. Explica ao CONTACTO que tinha uma vida normal até há cinco anos, quando um acidente lhe deu a volta à vida.
"Tinha acabado de encontrar emprego como motorista, mas depois de longos meses hospitalizado, fiquei no desemprego e após isso no RMG", lamenta.
"Gostava de encontrar um emprego adequado à deficiência que o acidente me deixou no pulso e que não me permite fazer todo e qualquer trabalho", diz, acrescentando que é pintor.
“Aqui na 'Stëmm' e noutras estruturas de apoio aos sem-abrigo sempre me trataram bem. Os luxemburgueses têm-me tratado melhor do que muitos portugueses. No Consulado português dizem-nos apenas que não podem fazer nada por nós e é para aqui que nos reencaminham”, lança ainda Humberto no final da conversa com os sem-abrigo que aceitaram partilhar as suas experiências de vida e a sua realidade com o CONTACTO.
Alexandra Oxacelay da "Stëem vun der Strooss", estrutura de apoio aos sem-abrigo, diz:
"O Consulado não sabe quantos portugueses estão sem-abrigo?
Nunca nos perguntaram nada!"
Nunca nos perguntaram nada!"
Entre Janeiro e Dezembro deste ano, o centro de apoio aos sem-abrigo "Stëmm vun der Strooss" ("A Voz da Rua") registou a passagem pelas suas instalações em Bonnevoie de 1.005 sem-abrigo: 789 homens e 216 mulheres. Desses, 127 (12,65 %) eram portugueses ou de origem portuguesa (mais um caso do quem 2006): 103 homens e 24 mulheres.
Os portugueses sem-abrigo são, segundo Alexandra Oxacelay, que dirige aquela estrutura, sobretudo "desempregados de longa duração ou ex-detidos, mas a maioria são toxicodependentes, entre os 25 e os 40 anos".
Quando confrontada com o facto de os serviços sociais do Consulado de Portugal no Luxemburgo terem declarado na semana passada ao CONTACTO que desconheciam o número de portugueses sem-abrigo que havia no Luxemburgo, Alexandra Oxacelay responde apenas: "Se nos tivessem perguntado, já faziam uma ideia. Mas nunca nos perguntaram nada!"
"É verdade que nunca perguntámos às estruturas de apoio aos sem-abrigo quantos portugueses lá iam. Quando algum se dirige ao Consulado, tentamos resolver o problema pontualmente e encaminhamo-lo para esses centros que possam auxiliar os mais desvalidos", admite José Araújo, adido social do Consulado.
"O Consulado não tem a possibilidade para dar resposta ao problema nem está assim previsto a não ser encaminhando essas pessoas para estruturas locais", acrescenta.
Recorde-se que, na nossa edição da semana passada, José Araújo tinha declarado ao CONTACTO que o serviço que dirige tinha "apenas conhecimento das pessoas com residência legal no Luxemburgo" e que o Consulado não dispunha de números relativamente aos portugueses que "estão em 'trânsito' ou que não têm domicílio fixo no país".
"O problema de alguns dos portugueses sem abrigo é que estão ilegalmente no país e não podem assim accionar todo o arsenal de mecanismos de ajuda que o Grão-Ducado tem à disposição dos mais desfavorecidos, como o Rendimento Mínimo Garantido (RMG) e outros", tinha ainda acrescentado o adido social.
Alexandra Oxacelay refere que o número exacto de sem-abrigo é difícil de determinar, porque não há dados oficiais. O número avançado pela "Stëmm" refere-se apenas à estrutura de Bonnevoie. A responsável admite que talvez existam até mais pessoas nesse caso, mas que passam por outras estruturas da capital como os centros "Abrigado", "Ulysse" e "Nuetseil" ou a "Abrisud" e a antena da "Stëmm" em Esch/Alzette.
"Cada estrutura tem os seus registos, mas não podemos simplesmente adicionar o número dos sem-abrigo de cada uma, porque há pessoas que dormem na Abrigado ou no Ulysse e também passam pela Stëmm. O número é por isso difícil de determinar", explica.
DAR VOZ A QUEM NÃO A TEM
Todos os anos há 50 % de novos casos, mas não sabemos o que se passa com os outros que não regressam. Voltam para o país deles, encontram emprego, uma vida melhor... ou morrem. Não sabemos!”, conta a responsável.
A associação, subvencionada pelo Estado luxemburguês, acolhe diariamente os sem-abrigo, nas suas instalações em Bonnevoie e Esch/Alzette, propondo-lhes refeições gratuitas, roupa, apoio moral e psicológico. A equipa de cinco pessoas conta com assistentes sociais e psicólogos, além de uma “mãozinha providencial de muitos voluntários", diz a responsável.
A "Stëmm", que existe há 10 anos, edita uma revista de dois em dois meses distribuída gratuitamente e que serve para sensibilizar a opinião pública para esta temática e "dar voz a quem não a tem". A associação dispõe ainda de um serviço de mediação entre os sem-abrigo e os proprietários potenciais de apartamentos por arrendar, assumindo-se como garante para que assim seja mais fácil a um ex-sem-abrigo arrendar um local para morar, o que lhes é muitas vezes negado pelos proprietários.
“Aqui na 'Stëmm' não dispomos de camas para que os sem-abrigo possam pernoitar. Para isso existem outras estruturas com as quais colaboramos. Mas a meia-dúzia de estruturas que existem no país não chegam para oferecer abrigo nocturno ao milhar de pessoas que precisa. O ano passado morreu um jovem durante o Inverno, porque passou a noite numa cabina telefónica. É dramático, sobretudo num país como o Luxemburgo”, lamenta a responsável, adiantando, no entanto, que consciente do problema, o Estado luxemburguês organiza anualmente de Dezembro a Março a “Acção Inverno” distribuindo vales para os sem-abrigo poderem pernoitar em certos hotéis.
”O problema são aqueles que não passam por estes centros, porque não querem respeitar as regras e já se habituaram a viver na rua”, lamenta.
José Luís Correia (in Contacto e Agência Lusa, 24.12.07)
Sem comentários:
Enviar um comentário