sebenta de anotações esparsas, pensamentos ociosos, reflexões cadentes, poemas difusos, introspecções de uma filosofia mais ou menos opaca dos meus dias (ou + reminiscências melómanas, translúcidas, intra e extra-sensoriais, erógenas, esquizofrénicas ou obsessivas dos meus dias)
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cahier de notes éparses, pensées oisives, réflexions filantes, poèmes diffus, introspections d'une philosophie plus ou moins opaque de mes journées (ou + de réminiscences mélomanes, translucides, intra-sensorielles et extra-sensorielles, érogènes, schizophrènes ou obsessionnelles de mes journées)

quinta-feira, 19 de março de 2015

Dossier: Imigração portuguesa para o Luxemburgo começou há 50 anos (1/4)

Que idade tem a comunidade portuguesa? 

O CONTACTO festeja este ano o seu 45° aniversário. O jornal foi fundado em Janeiro de 1970, para informar a comunidade portuguesa no Luxemburgo. Ao comemorarmos esta data, surgiu-nos uma questão natural. Em que ano exacto situar o início da emigração portuguesa para o Luxemburgo? Esta pergunta levantou outras.

Quisemos saber se algum historiador, alguma entidade associativa, federativa, ou governamental já se debruçou sobre esta questão. Infelizmente, a resposta é não. Como estabelecer uma data para o início da imigração portuguesa no Luxemburgo? Devemos tomar em conta o acordo entre os governos luxemburguês e português para a vinda de mão-de-obra lusa para o Grão-Ducado, que data de 1970? Mas se a peregrinação de portugueses a Wiltz (1968), a fundação da primeira associação lusa – as Amizades Portugal-Luxemburgo (1969) – e até o nascimento do CONTACTO (1970) precedem a data desse acordo, como fixar aí o começo da imigração? Houve outros eventos antes desses, organizados pela comunidade portuguesa? Fomos investigar.

Questionámos historiadores, responsáveis políticos e dirigentes associativos sobre o assunto. Para uns, estabelecer a data exacta não é importante, enquanto outros respondem que o número de portugueses era ínfima e que não se pode falar de comunidade antes de 1970.

O CONTACTO sabe que havia portugueses no Luxemburgo antes de 1965. Há um registo de nascimento de uma menina portuguesa em 1928, filha de um trabalhador português da Arbed, como referido na brochura “Portugueses no Luxemburgo”, da ASTI, de 1992. Em 2010, o CONTACTO entrevistou Maria Augusta Esteves, que chegou ao Grão-Ducado em 1955. Havia pelo menos meia centena de portugueses em 1960, se contarmos aqueles com autorização de trabalho (ver quadro) e os clandestinos, muitos deles a trabalhar nas vinhas do rio Mosela. Outros chegaram em 1962 e 1963. Sabemos que pelo menos um deles trabalhou na construção do porto de Mertert, entre 1963 e 1965. Algumas dezenas de pessoas já constituem uma comunidade?

Segundo a primeira funcionária do Consulado de Portugal (ver entrevista na pág. V), em 1970 já havia, pelo menos, 11 mil portugueses registados no Consulado. O Statec ignora estes números nas suas estatísticas (ver quadro). No livro “Culture portugaise au Luxembourg” (1973), o então cônsul de Portugal, José Mendes-Costa, corrobora o número de 11 mil portugueses, precisando que houve chegadas maciças em 1968 e 1969, cerca de mil num ano e quase três mil no outro.

Em apenas quatro anos, entre 1965 e 1969, chegaram mais de 5.500 portugueses. Depois, num só ano, em 1970, chegaram 5.403. O actual Consulado-Geral de Portugal no Luxemburgo não tem dados sobre as chegadas de portugueses nestes anos. Os portugueses que chegavam ao Luxemburgo e não precisavam de ir ao Consulado, não faziam parte da estatística. Ou seja, o número pode ter sido até muito maior.

Agora, tomemos em consideração apenas o ano de 1965, quando estavam registados mais de 1.500 portugueses no serviço consular (o Consulado só seria inaugurado em Março de 1966), sem contar os clandestinos, que também os havia. Um grupo de um milhar e meio de pessoas já constitui uma comunidade? Sim, dirão alguns. Não, responderão outros, um grupo humano disperso não é uma comunidade organizada, nem sequer existiam ainda associações.

E se tomássemos em conta o primeiro evento organizado por portugueses aqui no Grão-Ducado?

O CONTACTO descobriu que em Junho de 1965 os portugueses celebraram pela primeira vez no Luxemburgo o Dia de Portugal e de Camões, com uma missa na Catedral Notre-Dame. Depois da missa, houve um almoço-convívio e uma festa no restaurante Carrefour, no boulevard Royal, que contou com música, cantores e dançarinos portugueses, luxemburgueses e até cabo-verdianos (os cabo-verdianos de então tinham nacionalidade portuguesa – ver artigo na pág. XI). Os organizadores esperavam uma centena de pessoas, e ficaram surpreendidos quando apareceram cinco vezes mais portugueses (ver artigo na pág. III).
Cerca de 200 pessoas assisitiram à missa celebrada pelo 10 de Junho, Dia de Portugal e de Camões, em 1965. Depois pousram para o objectiva de Carlos de Pina, frente à catedral Notre-Dame do Luxemburgo Foto: Arquivos Família Pina

Podemos assumir esta data como o início da imigração portuguesa no Luxemburgo?

Porque é que esta questão é tão importante para nós? Se a comunidade portuguesa está no Luxemburgo há 50 anos, surpreende que nenhuma associação, federação ou entidade governamental tenha decidido ainda assinalar a data. Os portugueses, que tanto contribuem há já cinco décadas para o crescimento do país, não merecem? Não temos direito a um nome de rua ou de bairro? Os italianos tiveram direito ao seu “quartier Italia”, em Dudelange. Mas hoje, não existe nenhuma rua com o nome de Portugal ou de um português, uma placa comemorativa, uma calçada portuguesa no centro da capital, um mural de azulejos, que assinale o nosso meio-século de presença por estas terras.

A rue de Bragance, na capital, não faz referência à cidade transmontana, mas à luso-austríaca Maria Ana de Bragança (1861-1942), filha de D. Miguel, mulher do grão-duque Guillaume IV, mãe da grã-duquesa Charlotte e bisavó do actual grão-duque Henri.

É verdade que existe um busto de Camões, inaugurado em 2006, na place Léon XIII, em Bonnevoie. Mas é tão discreto que parece um parco reconhecimento da contribuição da comunidade para este país. E nós, preocupamo-nos com isso, ou somos uma comunidade sem memória? Esta reflexão sobre a imigração portuguesa e a memória até podia ir mais longe e estender-se ao país: o Luxemburgo, um país atravessado há séculos por emigrações e imigrações, não teve ainda oportunidade ou vontade política de criar um Museu das Migrações? Somos um país sem memória?

O CONTACTO não pretende responder a todas as perguntas, mas apenas lançar o debate.

Por ocasião do nosso 45° aniversário, neste suplemento especial, falámos com três portuguesas que chegaram ao Luxemburgo antes da grande vaga de imigração (págs IV e V), conversámos com a geógrafa luxemburguesa Aline Schiltz, especializada em migrações humanas, que defende que houve um processo de “lusificação” do Luxemburgo; evocámos também os primórdios da imigração cabo-verdiana para o Grão-Ducado (pág. XI) e prestámos homenagem aos portugueses e luso-descendentes que marcaram a história do desporto luxemburguês (pág. XII).

José Luís Correia
in CONTACTO, 11/03/2015 




Dossier: Imigração portuguesa para o Luxemburgo começou há 50 anos (2/4)

Heroína de Pina, em 2009 Foto: Manuel Dias/Contacto
Heroina de Pina: “A primeira festa do 10 de Junho no Luxemburgo foi ideia do meu marido” 

Heroína de Pina, viúva de Carlos de Pina, fundador do CONTACTO, recorda como emigrou para o Luxemburgo e a primeira festa do 10 de Junho que o seu marido organizou, em 1965. Este terá sido o primeiro evento de que há registo organizado pela comunidade portuguesa no Grão-Ducado.

Carlos de Pina Foto: Arquivos Família Pina
“Em Portugal, o meu marido fazia parte da Acção Católica. Conhecia o padre Plácido Guerné, que vinha frequentemente celebrar missas a Estrasburgo, em França, mas também à Alemanha e ao Luxemburgo. De vez em quando, o meu marido vinha com ele. Numa das viagens ficou a conhecer o Luxemburgo e gostou tanto do país que alguns meses depois já cá estava. Isso foi em Maio de 1964 e eu vim seis meses depois, em Dezembro, com as minhas duas filhas – as duas mais novas já nasceram no Luxemburgo. Eu tinha 28 anos e o meu marido 37”.

Heroína conta que quando o seu marido chegou ao Luxemburgo “não pôde trabalhar na sua profissão”, porque não dominava o luxemburguês nem o alemão. Encontrou assim um primeiro emprego como electricista na empresa de construção Soclair.

“O pai dele tinha uma empresa de instalações eléctricas em Cascais, ele gostava e percebia de electricidade. Mas como não estava habituado àqueles trabalhos, pouco depois de começar a trabalhar, caiu numa obra, partiu um braço e nunca mais ficou bom do punho, o que o impossibilitou de continuar nessa profissão. Foi trabalhar como fiel de armazém para os ‘Grands Magasins Sternberg Frères,’ que ficavam na rue du Curé [na capital]”, conta Heroína.

O primeiro evento organizado pela comunidade portuguesa em terras do Luxemburgo

“Assim que aqui chegou, o meu marido começou logo a organizar coisas para os portugueses. Quando chegámos, só havia um cônsul honorário [Jean Turk, 1919-2013, nomeado consul honorário em 1959]. Depois, já em 1965, veio o cônsul Mendes-Costa, mas ainda não havia Consulado [seria inaugurado em Março de 1966]. Quando queria organizar alguma coisa, o meu marido dirigia-se às autoridades luxemburguesas”, lembra. Foi assim, com a ajuda de Marcel Barnich, do Serviço Social da Mão de Obra Estrangeira (mais tarde rebaptizado Serviço Social da Imigração), que conseguiu organizar a primeira festa do Dia de Camões, em 1965.

Marcel Branich Foto: Arquivo LW
“O meu marido teve a ideia de celebrar uma missa na catedral e depois fazer um almoço-convívio“, conta Heroína. Na fotografia da época (ver artigo aqui), que faz parte dos arquivos da família Pina, podem reconhecer-se Marcel Barnich e o cônsul José Mendes-Costa, em primeiro plano, junto a um grande grupo de pessoas, no adro da catedral.

“O meu marido não está na foto, porque foi ele que a tirou. O cônsul tinha vindo há pouco tempo da Bélgica e só participou na festa”. Heroína mostra-nos o convite que Carlos de Pina enviou para Mendes-Costa a 5 de Maio de 1965, e a resposta deste, dois dias depois, que assina “A bem da Nação, o vice-cônsul gerente, José Mendes-Costa”.

“Quem teve a ideia da festa foi o meu marido, que pediu a ajuda do senhor Barnich para a organizar. O cônsul só apareceu lá para fazer um discurso”, assegura Heroína, que estima terem participado na missa cerca de 200 portugueses [outras fontes referem 500 participantes].

Heroína não se lembra do padre que celebrou a missa, mas segundo um artigo publicado no Luxemburger Wort, em 19 de Junho de 1965 (“Erste ’Journée Portugaise’ in Luxembourg”, pág. 8), foi o padre espanhol Javier, da Missão Católica Espanhola, a celebrar essa missa para os portugueses.

Luxemburger Wort, 19/06/1965 (pág. 8)
As fotos do LW e dos arquivos da família Pina, o relato na primeira pessoa de uma das pessoas ligadas à organização desse primeiro Dia de Portugal em terras grã-ducais, permitem-nos estabelecer este evento como o primeiro organizado pela comunidade portuguesa no Grão-Ducado, que então emergia.

No artigo do Wort, pode ainda ler-se que a missa decorreu na cripta da Catedral Notre-Dame e que depois se seguiu um almoço na sala grande do restaurante Carrefour (que se situava no boulevard Royal), na capital luxemburguesa. “Foram mostrados filmes a cor de Portugal que despertaram no coração dos portugueses saudades da sua terra”, escreve o repórter do jornal luxemburguês. O artigo explica que a festa foi organizada por Marcel Barnich, responsável do Serviço Social da Imigração, mas não faz referência a Carlos de Pina.

Segundo o jornal, Barnich esperava pouco mais de uma centena de participantes e ficou surpreendido por terem aparecido mais de 500. No artigo pode ainda ler-se que nessa altura viviam no Luxemburgo cerca de um milhar de portugueses, sem citar fontes. Na realidade, já viviam quase dois mil portugueses no país (ver quadro).

Numa das duas fotos do artigo, a legenda diz que a festa contou com “cantores e músicos de pele escura das ilhas de Cabo Verde”. A descrição do jornalista, politicamente incorrecta para os nossos dias, deve ser vista à luz dos anos 1960, em que era pouco habitual, para não dizer “exótico”, ver estrangeiros no Luxemburgo, e muito menos de origem africana. Mas isto também revela que assim que houve portugueses no Luxemburgo, houve também cabo-verdianos, na altura com nacionalidade portuguesa (ver artigo na pág. XI).

O repórter do Wort não escreve se foram cantadas mornas, mas diz que se cantou o fado e que duas artistas luxemburguesas participaram na festa. “A jovem bailarina Marie-Claire Winandy, aluna da senhora Stenia Zapalowska [dançarina polaca que vivia no Luxemburgo], e a cantora Maggy Groff, que cantou canções luxemburguesas, provocaram um entusiasmo barulhento, típico do sul” (dixit). Houve assobios efusivos e piropos?

Marcel Barnich fez um pequeno discurso em português, agradeceu aos portugueses por terem vindo em tão grande número, falou na “necessidade do Luxemburgo contar com a emigração, e numa Europa que devia trabalhar por ser cada vez mais unida”, pode ainda ler-se. Pediu ainda aos portugueses para, caso tivessem dificuldades no país, recorrerem aos seus serviços.

O artigo evoca também o discurso de Mendes-Costa, que terá dado como recado aos portugueses “não trabalharem apenas com objectivos materiais, aprenderem os métodos de trabalho do Luxemburgo, especializarem-se nos mais diversos ramos”, para quando regressassem a Portugal “poderem ajudar a construir o país”. O artigo termina referindo que a festa acabou com o hino nacional português.

Em 1966

Luxemburger Wort, 17/06/1966 (pág.11)
Heroína conta-nos ainda que Carlos de Pina também fez parte da segunda festa do 10 de Junho, em 1966, numa comissão de festas já organizada pelo cônsul Mendes-Costa, de que faziam ainda parte a “senhora Rodrigues, os senhores Ferreira, Ventura e Fortunato”, pode ler-se também no Wort, em Junho de 1966. Dessa vez, a missa foi na Igreja Notre-Dame de la Paix, em Bonnevoie, e foi celebrada pelo abade Jos. Molitor. Depois, seguiu-se um almoço no Casino Sindical de Bonnevoie. “Lembro-me que nessa festa estava lá um jovem com um acordeão que se chamava Félix. Eu disse umas poesias, houve música, e comes e bebes”, conta Heroína.

Sobre a sua experiência da imigração, Heroína lembra-se dos primeiros tempos. “Quando chegámos, fomos morar para Niederanven. Lembro-me que quando cheguei ao Luxemburgo havia grandes montes brancos de neve nas bermas das estradas. Eu nunca tinha visto neve. Na noite em que fomos à Missa do Galo, na igreja de Niederanven, tínhamos que andar cerca de um quilómetro a pé, e eu chorei muito porque era o meu primeiro Natal longe da família. Mas quando saímos da igreja, estava tudo branco. Tinha nevado enquanto estávamos na missa. Era lindo. Na manhã seguinte, quando abri as persianas, estava um lindo dia de sol e fiquei maravilhada com a paisagem. É uma das minhas primeiras recordações do Luxemburgo.”

Heroína diz que as filhas não tiveram problemas de integração, nesses primórdios da imigração portuguesa. “Ao princípio, eram vistas como as estrangeiras, eram as únicas portuguesas. Mas quando chegaram à escola, aos seis anos – na altura não havia ensino precoce nem pré-primário –,elas já sabiam fazer contas e escrever português. Depois aprenderam depressa o luxemburguês e as outras línguas, sempre foram boas alunas. Hoje, duas trabalham na Comissão Europeia, uma na Ajuda Humanitária e a outra nas Estatísticas. As outras duas, uma é educadora para crianças deficientes e a outra jurista no Conselho de Estado. E já tenho quatro netos, um com 23, outro com 20, e dois gémeos com dez”, diz Heroína, com orgulho.

Heroína de Pina foi uma das fundadoras da associação Amizade Portugal-Luxemburgo (APL). Durante as décadas de 1970, 1980 e 1990 colaborou em várias outras associações e ranchos, escreveu dezenas de poemas e canções, nomeadamente para revistas à portuguesa, que redigia, montava e ensaiava, e que andaram em digressão pelo Luxemburgo. Nos últimos anos, colaborou com o Rancho Juventude Portuguesa de Dudelange.

Em 2009, foi agraciada com a Medalha da Ordem do Mérito do Estado português. Hoje tem 78 anos e reside em Mersch.

José Luís Correia 
in CONTACTO, 11/03/2015 

Resposta do cônsul Mendes-Costa ao convite de Carlos de Pina para participar na primeira festa do 10 de Junho no Luxemburgo (1965) Fonte: Arquivos Família Pina

Dossier: Imigração portuguesa para o Luxemburgo começou há 50 anos (3/4)

Maria José Donven Foto: Guy Jallay/LW
Maria José Donven: Primeira funcionária do Consulado chegou ao Luxemburgo em 1963 

A lisboeta Maria José Rodrigues de Abreu Donven foi uma das primeiras portuguesas a chegar ao Grão-Ducado, em 1963. Foi a primeira secretária do Consulado de Portugal, inaugurado em 1966.

“Quando eu era jovem não tinha a noção do que era a emigração. O meu pai era enfermeiro a bordo de um navio, estava sempre fora, e eu meti na cabeça, desde miúda, que também queria ver o mundo. Já adulta, conheci uma americana que tinha estado no Luxemburgo. Eu queria aprender francês e ela disse-me que no Luxemburgo se falava essa língua. Arranjou-me a morada de uma família de cá, que precisava de uma ‘fille-au-pair’ (ama), eu escrevi-lhes e mandaram-me vir. Eu queria voar, não me interessava para onde. Cheguei cá com 19 anos, no dia 5 de Março de 1963. Nevava tanto nesse dia... Eu não gostava de ser ‘fille-au-pair’ e depressa encontrei trabalho no Monopol, como grafista-decoradora. Em 1963, o Luxemburgo estava a celebrar o ’Ano do Milénio’ [o Condado do Luxemburgo foi fundado em 963], e como eu sempre tive jeito para o desenho, o meu primeiro trabalho no Monopol foi desenhar uma centena de cartazes com figuras da Idade Média para decorar as montras das lojas do grupo, que assinalavam a data. Estive lá três anos.”

Perguntamos-lhe como surgiu a oportunidade de trabalhar no Consulado. “Antes de chegar o cônsul José Mendes-Costa, havia um cônsul honorário de Portugal, o senhor Jean Turk [1919-2013], que tinha sido engenheiro da Arbed em Manaus, no Brasil [foi nomeado cônsul honorário em 17 de Agosto de 1959]. Quando começaram a chegar portugueses ao Luxemburgo iam bater-lhe à porta de casa, na rue Michel Lentz, no Limpertsberg, aos fins-de-semana e até de noite, coitado! Ele pediu-me para o ajudar a receber os portugueses. Quando começou realmente a ser muita gente, ele contactou Portugal para resolverem a situação. Foi aí que em 1965 o Mendes-Costa veio destacado de Antuérpia [na Bélgica], mas continuava a depender da Embaixada de Bruxelas. Só em 1966 é que foi nomeado cônsul de Portugal no Luxemburgo. Como eu já tinha trabalhado com o Jean Turk, o Mendes-Costa propôs-me trabalhar no Consulado. Só havia ele e eu, não havia dinheiro para mais [risos]. Bem, na realidade, eu nunca percebi muito bem aquelas contas, porque o Consulado funcionava na residência privada do cônsul, na rue d’Orange [na cidade do Luxemburgo] e eu nunca soube se foi ele que comprou a casa ou se foi o Estado português. O facto é que a casa dele estava muito bem mobilada, com móveis do melhor, como se fosse uma embaixada”, lembra. “Eu nunca compreendi muito bem aquele senhor”, confia Maria José.

“Ele era muito estranho, muito religioso, muito místico. Nem sei se ele era muito ‘Estado Novo’, tinha que representar o Estado português, era o papel dele. Lembro-me que um dia veio cá o embaixador de Portugal em Bruxelas e durante um jantar alguém comentava o problema do analfabetismo em Portugal. O embaixador levantou-se da mesa muito imperioso e disse: ’O povo é analfabeto e que Deus o guarde assim por muito tempo!’. Nós ficámos envergonhadíssimos, mas o cônsul subscreveu o que o embaixador tinha dito”, recorda Maria José.

“Ele era muito inteligente, mas era uma inteligência tortuosa, não sei se devido ao defeito dele – ele era muito vesgo, vesgo divergente, as pessoas não conseguiam olhá-lo nos olhos. Era também muito baixo, o que o complexava muito. Ele achava-se um intelectual e escreveu vários livros, em edições de autor, que depois enviava para todo o lado, incluindo para os ministérios luxemburgueses”. Algumas das obras podem ser encontradas na Biblioteca Nacional do Luxemburgo.

“O Mendes-Costa era natural de Oliveira do Hospital e apesar de haver muita gente aqui dessa região, as relações dele com a comunidade eram distantes. Ele gostava de estar com os portugueses, mas não tinha a empatia necessária. Era uma pessoa que se deixava muito impressionar pelos títulos”, recorda Maria-José, que não resiste a contar-nos um dos episódios que viveu com o diplomata.

“Um dia veio um chinês de Bruxelas, que disse que era mestre de conferências e que era português, porque a mãe tinha nascido em Macau. Mas não falava português, só francês. Não tinha certidão de nascimento porque, disse, a igreja em Macau onde tinha sido baptizado ardera. Eu disse que não o podia ajudar e ele quis falar com o cônsul. Eu não sei o que ele lhe disse, mas o cônsul veio-me dizer para lhe fazer um passaporte para cinco anos. Ora, na altura, quando havia dúvidas sobre a nacionalidade, havia duas testemunhas que diziam que conheciam aquela pessoa, fazia-se um passaporte por três meses, para que a pessoa voltasse a Portugal e regularizasse a situação. Como o ’chinês’ não tinha ninguém que o conhecesse ali, o cônsul foi à sala de espera, pediu a dois portugueses que servissem de testemunhas e depois deu-me o passaporte para eu assinar – porque entretanto ele tinha-me feito chanceler para a ‘casa’ funcionar quando ele se ausentava. Mas eu recusei assinar e disse-lhe: ‘Então, vêm aí portugueses com o passaporte caducado há dois meses e o senhor faz-lhes tantos problemas? E a este homem, que não tem documentos nenhuns, vai dar-lhe um passaporte por cinco anos? Eu não assino isto!‘. E teve que ser ele a assinar”, conta, entre risos, Maria José.
Foto com um grupo de estudantes portugueses, no início dos anos 1970. Maria José Donven (ao centro); ao seu lado direito, o cônsul José Mendes-Costa; atrás deste, o padre Manuel Fernandes (de óculos), o primeiro sacerdote português a vir para o Luxemburgo; em baixo, com um "papillon", Jean Barnich, filho de Marcel Barnich (do Serviço Social da Imigração) Foto: Arquivo Maria José Donven

Apesar de nem sempre se entender com o cônsul, não foi isso que a fez sair do Consulado, em 1970. “Saí porque fiquei grávida e porque casei”. Recorda-se que quando deixou o posto, havia 11 mil portugueses inscritos no Consulado de Portugal no Luxemburgo. Mais tarde, conta, foi uma das principais mobilizadoras da manifestação que pediu a demissão de Mendes-Costa, logo a seguir ao 25 de Abril. O diplomata viria a ser substituído em 31 de Janeiro de 1975 pelo cônsul Manuel Gervásio Martins de Almeida Leite.

Maria José diz que nunca foi muita associativa, mas lembra-se da aventura de ter fundado uma revista com Mili Tasch-Fernandes (ver artigo aqui).

Depois disso, casou e criou dois filhos. Um é bibliotecário, o outro escultor. Ao fim de 52 anos de imigração, Maria José diz que “arranha um pouco o luxemburguês”, “e bëssen“ (um pouco). “Tenho um conhecimento passivo do luxemburguês, consigo responder com frases curtas, mas não consigo desenvolver conceitos”. Hoje, aos 71 anos, o nome de família fá-la passar aos olhos de muitos por luxemburguesa, mas ela, riso largo e aberto, faz questão de os esclarecer.

José Luís Correia
in CONTACTO, 11/03/2015

Dossier: Imigração portuguesa no Luxemburgo começou há 50 anos (4/4)

Mili Tasch-Fernandes: “Já estou no Luxemburgo há 49 anos!” 

Há quase 49 anos no Luxemburgo, Mili Tasch-Fernandes chegou ao Grão-Ducado em Dezembro de 1966, com os pais. Tinha então 17 anos e “ainda” se chamava Mirandolina Fernandes. A vinda para o Luxemburgo surgiu porque os pais conheciam luxemburgueses que tinham “imigrado” de forma forçada para as Caldas da Rainha, de onde a sua família é oriunda.

“Os Lieberman eram judeus que tinham fugido do Luxemburgo e se exilaram nas Caldas durante a Segunda Guerra Mundial. Foi por eles que ouvi falar deste país pela primeira vez”, conta Mili. “A filha dos Liebermann casou com um amigo do meu pai, o Luís Costa e Silva, que foi director do Hospital Termal das Caldas. Em 1965, quando a empresa na qual o meu pai trabalhava foi vendida, o Luís aconselhou-o a emigrar para o Luxemburgo. Foram os sogros do Luís que encontraram um trabalho para o meu pai numa oficina de carros em Gasperich. O meu pai trabalhou ali um ano até nós virmos, em Dezembro de 1966. Mas só nos registámos no Consulado em Janeiro de 1967”, recorda Mili, acrescentando que foi ali que conheceu Maria José Donven (ver artigo aqui).

“Como eu já falava francês, encontrei trabalho como ’fille-au-pair’ (ama) na família que tinha a Boucherie Schmit, onde hoje são os Talhos Ferreira, em Bonnevoie”. Só ficou quatro meses, porque os Schmit confundiam o trabalho de ama com o de mulher de limpezas. Seguiu-se uma experiência similar numa família belga.

Já com 18 anos, concorreu a um lugar de recepcionista na empresa de construção CECO. “A minha mãe queria ir comigo à entrevista de trabalho, mas eu insisti em ir sozinha. Quando lá cheguei e vi que todas as outras candidatas estavam acompanhadas por um dos pais, fiquei desarmada”. Conta que o patrão da CECO era um luxemburguês com modos americanos. “Fez-me a entrevista com as botas em cima da mesa, usava chapéu de cowboy e fumava charuto. Gostou muito de mim, porque apesar de eu não falar luxemburguês, falava inglês. Uns dias mais tarde mandou chamar-me. “You are the girl we want!” [És a rapariga que queremos], “e sabes porquê?”, perguntou. “Porque vieste à entrevista sozinha!”, recorda. A CECO foi uma das empresas que estava na altura a construir as fábricas da Goodyear, da Dupont de Nemours e da Commercial Hydraulics. Mili foi rapidamente promovida a assistente do chefe do pessoal, o que fez com que vivesse a experiência de emitir centenas de contratos de trabalho a portugueses que faziam fila desde manhã cedo à porta da empresa.

“Aí há uns anos, cruzei-me com um senhor que me agradeceu por ter eu lhe ter feito o seu primeiro contrato de trabalho no Luxemburgo. Perguntou-me se eu sabia que nessa altura (final dos anos 60) havia um indivíduo que esperava os portugueses na gare e lhes cobrava 500 francos para os levar a uma empresa onde havia uma menina portuguesa que ’dava’ contratos de trabalho. Não sabia nada dessa história, fiquei chocada”, conta Mili.

Foi nesses anos que conheceu Charles Kraus, que era professor do irmão (que tinha 12 anos) numa ’classe d’accueil’ na escola Aldringen, e a família Pina (ver artigo na pág. IV), ambos fundadores da APL e do CONTACTO. Foi assim que naturalmente começou a colaborar com a APL e com o jornal. “Eu não escrevia só para o CONTACTO, fazia parte da equipa que passava serões a colar as cintas para enviar o jornal”, lembra. E essa aventura jornalística levou-a a outra. Em 1972, com Maria José Donven e um outro investidor, fundou a “Dois Focos”, a primeira revista portuguesa do Luxemburgo, que só durou 11 meses. “A revista era impressa na tipografia do jornal ’L’avenir du Luxembourg’, em Arlon. Os tipógrafos belgas não conheciam o português e nós tínhamos que ir trabalhar três vezes por semana para preparar o jornal”.

Nos anos 1969/70 e 1974/75 trabalhou como funcionária no Consulado de Portugal. Depois casou com um luxemburguês nascido no Congo belga, do qual teve dois filhos. Um é hoje jornalista e o outro realizador de cinema. Trabalhou ainda nos bancos BGL e Kredietbank.

Em 1977 integrou as instituições europeias, onde fez a sua carreira, tendo-se reformado há dois anos e meio. Luxemburguesa pelo casamento, foi “a primeira portuguesa a trabalhar para as instituições europeias, ainda antes de Portugal aderir à CEE”. Foi ali que dinamizou vários grupos culturais, entre outras actividades.

Estudou alemão por correspondência, “um pesadelo”, recorda, mas isso permitiu-lhe aprender luxemburguês sozinha. Durante 20 anos foi formadora do Serviço de Ensino para Adultos do Ministério da Educação e da autarquia do Luxemburgo, onde ensinou luxemburguês a portugueses e português a luxemburgueses.

Foi presidente das Jornadas Literárias de Mondorf, integrou o conselho de administração da Abadia de Neumünster, foi presidente da “Maison des Associations”, entre outras actividades culturais e associativas. Hoje, continua a colaborar activamente com a Confederação da Comunidade Portuguesa no Luxemburgo (CCPL), onde é responsável pelo Pólo de Formação para Adultos. Em 2001, recebeu a comenda do Infante D. Henrique do Estado português pelo seu trabalho na difusão da cultura e da língua portuguesas.

José Luís Correia 
in CONTACTO, 11/03/2015

quinta-feira, 5 de março de 2015

Editorial no jornal CONTACTO: "As novas invasões bárbaras"

Cristãos perseguidos e massacrados, mulheres espancadas, apedrejadas até à morte ou abatidas à queima-roupa em plena rua por não estarem “devidamente” cobertas ou simplesmente por vestirem um pulóver de cor vermelha, “infiéis” capturados, torturados, degolados, decapitados, imolados vivos dentro de jaulas, crianças escravizadas, utilizadas como escudo humano ou crucificadas e enterradas vivas. E tudo isso vangloriado, propagandeado, em vídeos ignóbeis e abjectos exibidos na internet.

A barbárie do Estado Islâmico parece não ter limites, é aterradora, brutal, bestial (sem ofensa para os animais, parafreaseando Dostoievski). Não tem ideologias nem credo. Não tem! Que ideologia, que religião, em nome de que deus se praticam estas atrocidades inomináveis? Não! Não é religião nem guerra santa, é apenas vontade de propagar o caos e a selvajaria.

As últimas vítimas do ódio jihadista são obras de arte milenares do museu de Mossul, no Iraque. Estelas babilónicas, um touro androcéfalo alado assírio, estátuas do período helenístico, todos destruídos à marretada, com picaretas, maços e martelos pneumáticos. Uma devastação similar à destruição das obras de arte incas, maias e astecas pelos primeiros conquistadores espanhóis no início do século XV. Mais de dois mil livros, pergaminhos, manuscritos e gravuras, alguns com mais mais de 5 mil anos, foram queimados pelos jihadistas, em Janeiro, num dos maiores autos-da-fé de que há memória desde o incêndio da biblioteca de Alexandria.

Foi ali, no Iraque, que brotaram as mais antigas sociedades humanas, que se redigiram os primeiros códigos de lei, que se elevaram do barro as primevas cidades. São os registos da aurora da civilização que estão a ser reduzidos em pó, num esforço (gorado, esperamos!) de os apagar da face da Terra e das páginas da História.

O Estado Islâmico copiou assim os talibãs do Afeganistão, que em 2001 dinamitaram os budas de Bamiyan, que ali se erguiam há 1.500 anos.

Todas estas obras de arte, património de valor inestimável da Humanidade, foram testemunhas da ascensão e queda de impérios e civilizações, viram passar por eles os séculos e alguns deles os milénios, foram, se não admirados, pelo menos, respeitados por exércitos, conquistadores, reis, imperadores e até ditadores para, finalmente, serem demolidos sem glória por hordas ferozes de extremistas cobardes. Cobardes, porque uma obra de arte não devolve o murro, não se sabe defender. Cobardes porque se escondem atrás de uma religião e de um deus para justificarem os seus crimes e a sua pequenez.

 Que ódio é este? Ódio à civilização, ao ser humano? Onde está o Islão tolerante que foi um exemplo civilizacional, intelectual e de coabitação na Idade Média? Que leitura deturpada do Corão leva a actos sórdidos desta índole?

Para o Estado Islâmico todos nós, ocidentais, somos inféis a abater, a exterminar. Como o recordou Steve Duarte, o português que trocou Meispelt, no Luxemburgo, pela Síria, em entrevista à RTP na semana passada. Steve aproveitou para revelar que ele era um dos webmasters que criava as páginas internet e os “gloriosos” vídeos para o Estado Islãmico. Aberrante!

Mas não é só a Europa ou o Ocidente que devem lutar para erradicar este flagelo islâmico, inimigo de toda a Humanidade. Todos os países muçulmanos deveriam empenhar-se mais numa luta sem tréguas contra quem mancha assim a religião de Maomé. Mas quanta conivência, cumplicidade até, da parte de certas organizações e estados muçulmanos, sem falar dos príncipes e emires que financiam, cada vez menos secretamente, os jihadistas! O intuito? Propagar o caos na Europa e no Ocidente. Para quê? Objectivos que nada têm a ver com religião, mas com o desenhar de futuras hegemonias políticas e sobretudo económicas.

Já repararam que a guerra do petróleo entrou numa nova fase, com a exploração em cada vez maior escala do “ouro negro” a partir das jazidas de xisto? Esta é a verdadeira guerra que se trama nas entrelinhas da História e dos jornais. As guerras dos recursos naturais vão marcar o século XXI. A procissão ainda vai no adro, mas já se vislumbra um século tumultuoso.

O conflito que opõe Kiev aos separatistas pró-russos do leste da Ucrânia é uma guerra pelos recursos naturais. Putin, saudosista soviético, sonha com um novo império russo e não admite que o travem na sua “gesta”. Que o diga Boris Nemtsov, conhecido opositor do presidente russo, assassinado na sexta-feira. Mas a UE e os EUA também têm responsabilidades no conflito ucraniano. Podem até agitar-se bandeiras anti-fascistas, pró-democráticas ou pró-europeias, mas são de facto interesses políticos e económicos que germinaram este conflito, que se espera não venha a degenerar em guerra civil ou pior, se propague à UE. Um conflito no qual não há heróis de um lado – Kiev, UE e EUA – e vilões do outro – Donetsk e Moscovo. A UE apoia Kiev para garantir o futuro alargamento da sua influência política a leste e a perenização do fornecimento de gás; Moscovo financia Donetsk para manter o poderio na região e assegurar o acesso ao Mar Negro.

 E face a estas novas invasões bárbaras ante portas, o que faz a União Europeia? Os Estados-membros, em vez de falarem a uma só voz, de se apresentarem como um bloco unido e solidário, estão cada vez mais divididos. Em nome de regras económicas dogmáticas, inventadas à pressa no início dos anos 1990, zangam-se por “tostões”, os “bons alunos” apontam e punem os “maus alunos”, que ameaçam de exclusão do “clube”. Por outro lado, intestinamente, outros questionam a própria União, exacerbando os nacionalismos.

 “Há o risco cada vez maior de ver os guarda-fronteiras que devem defender a Europa contra a barbárie crescente se tornarem eles próprios fascistas”, advertia em Janeiro, em entrevista ao Le Monde, o Prémio Nobel da Literatura húngaro Imre Kertész.

Quo vadis Europa, quo vadis Orbi? Que século XXI nos espera?

José Luís Correia
in CONTACTO, 04/03/2015