sebenta de anotações esparsas, pensamentos ociosos, reflexões cadentes, poemas difusos, introspecções de uma filosofia mais ou menos opaca dos meus dias (ou + reminiscências melómanas, translúcidas, intra e extra-sensoriais, erógenas, esquizofrénicas ou obsessivas dos meus dias)
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cahier de notes éparses, pensées oisives, réflexions filantes, poèmes diffus, introspections d'une philosophie plus ou moins opaque de mes journées (ou + de réminiscences mélomanes, translucides, intra-sensorielles et extra-sensorielles, érogènes, schizophrènes ou obsessionnelles de mes journées)

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

episodio 1

Chovia ha tres dias e via-se no rosto dos passantes que estavam cansados de tanta agua. Cada passada apressada ou pesada a agua saltava, indiscriminadamente molhava peugas e meias de vidro, sapatos italianos usados e botas de tacao novas em folha. As bainhas das calcas molhadas, os homens de ar sisudo, as mulheres com as maos nas saias leigeiramente puxadas para cima, de rimel carregado e labios em diagonal. 

Ele estava parado na esquina do Cafe Neruda, o chapeu e a gabardine encharcados a pingar, as maos nos bolsos, os dedos a brincar nervosos com uma moeda, os oculos algo embaciados e escorregadios, o frio no nariz dava-lhe um ar corado e incomodado.  

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

EDITORIAL: Ideocracia e populismo

Donald Trump é um enigma. Sem experiência política e um currículo de empresário astuto mas sem escrúpulos, como agirá no cargo máximo da maior superpotência mundial?

“Ideocracy”, comédia distópica de 2006, conta a história de uma América idiotizada, que se estupidificou moral e intelectualmente, elegendo um imbecil para a Casa Branca. Será uma obra de antecipação?

Sem cair numa comparação fácil com Trump, a verdade é que Donald deixa a impressão de alguém que não sabe onde se foi meter. Parece que se candidatou à Casa Branca por causa de uma aposta. E que nem esperava ganhar, como o prova o discurso de vitória, que destoou logo dos comícios inflamados da campanha.

Num discurso calmo de 15 minutos, dois terços foram dedicados aos agradecimentos, e apenas cinco minutos para resumir sem convicção, carisma, vigor ou a sua pujança habitual duas ou três ideias básicas de campanha.

Nos dias seguintes à eleição, Donald parecia estar a “destrumpizar-se”. Disse que já não ia deportar 11 milhões de indocumentados, mas apenas “dois ou três milhões de criminosos ilegais”, o que soa a rídiculo quando se sabe que Obama expulsou 2,5 milhões de clandestinos entre 2009 e 2016. O muro que prometeu erigir na fronteira mexicana – 3.200 km de comprimento (!) – pode vir a ser apenas “uma vedação”. E até o Obamacare, que prometeu erradicar, afinal “tem coisas boas”. Também já se retraiu em promessas como as de não deixar entrar mais muçulmanos no país, encarcerar Hillary, “rasgar” o acordo nuclear iraniano, taxar em 45% os produtos chineses, reduzir o financiamento na NATO, etc.

Trump parecia estar finalmente a entender os contornos do realismo político e do exequível. Mas Trump e o bom-senso são antónimos. Percebendo que pode perder apoio popular, nomeou Stephen Bannon, um racista supremacista conspiracionista, como seu alto conselheiro. E há mais nomeações discutíveis: Michael Catanzaro, lobista do petróleo, pode vir a ser secretário da Energia, a Agricultura pode ir para Michael Torrey, lobista do sector dos refrigerantes e dos laticíneos, para regulador das telecomunicações Jeffrey Eisenach, consultor da operadora Verizon, e por aí fora. Ele, que prometeu limpar “o pantanal de Washington dos lóbis”, está a fazer... exactamente o contrário!.

Estouvado, inconstante, demagogo? Oportunista, com certeza. Que mais esperar de alguém que age segundo o vento sopra? Alguns generais no Pentágono prometem manter longe de Trump “o botão”, referindo-se ao arsenal nuclear dos EUA.

Na Europa, a vitória de Donald Trump deve interpelar-nos: porque preferiram os eleitores Donald a Hillary? Porque esta representava a elite? Se é assim tão fácil a um bilionário frívolo e de moral volúvel, de vocabulário limitado e vulgar, chegar à Casa Branca graças a slogans simplistas, temos de ter em atenção a tendência, que o Brexit já indicava. O populismo está a alastrar também no seio da UE: Grécia, Hungria, Polónia, França, Alemanha (Luxemburgo?). Onde o deixaremos chegar?

José Luís Correia
16/11/2016, in CONTACTO

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

EDITORIAL no Jornal CONTACTO: "Velhos são os trapos" OU "Este não é um país para velhos...portugueses"

Um estudo da Universidade do Luxemburgo mostra porque há poucos portugueses nos lares da terceira idade no país. E dá pistas para possíveis soluções. 

Há uma coisa estranha que acontece volta e meia no Luxemburgo. De repente, alguém surpreende-se que o país tenha imigrantes e que estes tenham necessidades específicas. Nem parece que a imigração no país começou há 130 anos, tal é por vezes a surpresa de políticos e autoridades. A não ser que seja indiferença, na melhor hipótese, ou um ostracismo latente que se ignora, na pior.

No domingo, um episódio caricato de uma natureza que tem a ver com o choque cultural mais básico ilustrou mais uma vez isso. Um grupo de refugiados, alojados na Luxexpo, recusou-se a comer o rosbife servido ao almoço, por pensarem tratar-se de carne estragada. Simplesmente desconheciam esta forma de cozinhar carne.

Só pode ser insensibilidade e ignorância por parte das autoridades. Não imagino que num jantar entre o Governo e o magnata indiano Lakshmi Mittal fosse servida carne de vaca, um animal sagrado na Índia. Será que o interesse depende do porta-moedas do estrangeiro?

É exatamente isso que diz Maxim Kantor, um artista e escritor russo dissidente que entrevistamos nesta edição, quando se refere ao Brexit e ao sentimento anti-estrangeiros dos britânicos.

O Luxemburgo precisou, e continua a precisar, de mão de obra estrangeira, e o que teima em chegar são... pessoas. Pessoas com tradições religiosas e culturais bem suas, uma alimentação diferente, costumes e festas à sua maneira, filhos que precisam de creches e escolas adaptadas, imigrantes que chegados à velhice precisam, também aí, de cuidados específicos. Como o Luxemburgo parece agora descobrir.

Há uns anos, uma antiga ministra da Família dizia-se preocupada porque não entendia a razão de não haver idosos portugueses nos lares da terceira idade luxemburgueses. As respostas eras múltiplas mas óbvias, como demonstra agora um estudo da Universidade do Luxemburgo.

Apesar de gozarem de bastante conforto (alguns até são luxuosos), os lares no país são caros para as pequenas reformas dos portugueses. Além disso, nos lares estes idosos ficam isolados, já que a maioria dos utentes são luxemburgueses, e tanto uns como outros, falando pouco ou mal o francês, preferem a sua língua materna. O estudo preconiza a criação de estruturas da terceira idade específicas para os imigrantes idosos, mais adaptadas aos estrangeiros.

É o mínimo que estes idosos merecem, depois de terem ajudado o Luxemburgo a crescer e a enriquecer como país e nação. O papel dos filhos nesta etapa da vida dos pais também é importante, mas o Estado luxemburguês não pode continuar a furtar-se às suas responsabilidades.

A primeira geração de imigrantes acaba assim com o mito do regresso à terra natal, mas não abdica do sonho de ter uma velhice tranquila, perto de filhos e netos.

José Luís Correia
in CONTACTO, 09/11/2016

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Entrevista: "O que existe hoje na Rússia são novas formas de feudalismo e de fascismo"

Por José Luís Correia - Maxim Kantor é um artista plástico e dissidente russo. Pintor, escultor, escritor, dramaturgo, filósofo, pensador, mostra-se bastante crítico do “putinismo”, que acusa de favorecer o feudalismo e o fascismo no país. Em França lançou este ano oromance “Feu Rouge” (“Red Light”, em inglês). No Luxemburgo, a sua mostra de pintura “Le nouveau bestiaire” esteve recentemente exposta na Abadia de Neumünster, no Grund.

Maxim Kantor Foto: Alain PIron


(...)
Leia o artigo, na íntegra, na edição do jornal Contacto desta quarta-feira.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

EDITORIAL: Mundo sustém respiração

Hillary Clinton ou Donald Trump, qual o próximo ocupante da Casa Branca? A resposta chega na terça-feira, 8 de novembro. Entretanto, meio mundo está expectante e anseia pelo mal menor.

A campanha eleitoral para as presidenciais norte-americanas entrou na sua última semana e é seguida há meses por quase todo o planeta, que sustém a respiração e espera pelo cenário menos pior. Hillary Clinton está à frente de Donald Trump nas sondagens. A democrata recolhe 47% das intenções de voto e o opositor 43% (segundo o site RealClearPolitics.com, à hora do fecho da edição).

Mas no dia do sufrágio pode haver surpresas, como em 2000, quando Al Gore era o favorito mas George W. Bush foi eleito. Com as consequências que todos conhecemos. Talvez por isso as presidenciais americanas suscitem tanto interesse em todo o globo.

Trump começou como um ’outsider’ risível, depois conquistou o eleitorado republicano, afastou os candidatos mais sérios e liderou as sondagens durante meses. Mas agora está em recuo, devido a controvérsias relativas a declarações sobre como considera e trata as mulheres, os povos latinos, os afro-americanos e até os seus empregados. Mas também pela falta de transparência das suas finanças. Trump é o seu próprio pior inimigo, autor de disparates, insultos e ofensas que fazem corar qualquer político e sentir-se embaraçado todo o campo republicano, o que lhe tem valido ver cada vez mais apoiantes do ’Grand Old Party’ dizerem abertamente que votarão nos Democratas pela primeira vez.

E, no entanto, Trump tem seguidores que o apoiam cegamente. Como aquele apoiante afro-americano que na semana passada foi a um comício do magnata na Carolina do Norte e acabou sendo expulso por o considerarem um opositor, simplesmente por ser negro. O homem rechaçado admite que vai, mesmo assim, votar em Trump (!?). Um amigo meu diz que Trump só se candidatou para provar que é possível fazer pior que W. Bush.

Com tudo isto, como não preferir Hillary, que se pode tornar na primeira mulher no cargo máximo do poder nos EUA? Pois, mas o que poderia ser, afinal não parece assim tão óbvio. É que Hillary também tem esqueletos no armário. Apesar de gozar de uma relativa boa nota na opinião pública pelos seus papéis de Primeira Dama e senadora, o escândalo Benghazi e o caso que o FBI investiga sobre ter utilizado o seu correio eletrónico privado para tratar de emails estatais pôs em questão o seu desempenho como secretária de Estado. Também o dossier imobiliário Whitewater manchou a sua reputação.

Com o barulho das luzes ninguém viu nada: o teatro das presidenciais nos EUA afastou para segundo plano o acordo de livre comércio CETA, assinado no domingo entre a UE e o Canadá. Um tratado que elimina barreiras alfandegárias, mas parece favorecer mais as multinacionais do que os cidadãos e pode levar à desregulamentação da economia, do mercado do trabalho e ao desmantelamento dos direitos sociais.

José Luís Correia
in Contacto, 02.11.2016